REINALDO JOSÉ LOPES
SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS) – O neurocientista português António Damásio tem uma notícia não muito animadora para quem sonha em criar cérebros eletrônicos com alguma forma de consciência, parecida com a dos seres humanos: esse tipo de plano provavelmente não vai funcionar.

“Paradoxalmente, aquilo que seria preciso para que as inteligências artificiais fossem mais como as nossas é a vulnerabilidade. Os computadores têm um funcionamento extremamente robusto. Não são vulneráveis como nós, que somos uns anjinhos à mercê do que o mundo nos dá”, brinca ele.

Mas foi justamente essa relativa fragilidade das entidades vivas que produziu um sistema nervoso capaz de impulsionar o surgimento dos sentimentos e da capacidade de aprendizado. São esses os traços que caracterizam a consciência da nossa espécie e, muito provavelmente, a de outros animais também.,

Damásio, 78, detalha os argumentos sobre o tema em seu mais recente livro, “Sentir e Saber: As Origens da Consciência”, que acaba de chegar ao Brasil. À primeira vista, as menos de 200 páginas da obra talvez pareçam pouca coisa para enfrentar um assunto cercado de tamanha aura de mistério, mas o pesquisador da Universidade do Sul da Califórnia (Estados Unidos) diz que a brevidade, nesses casos, é uma virtude.

“Quando se fala de problemas extremamente complicados, é necessário decidir o que é essencial e definir uma ordem clara para aquilo que se vai explicar. E, para muitos leitores, não adianta gastar centenas de páginas com isso. Tentei criar capítulos muito pequenos, quase poéticos, que pudessem dar uma ideia da imensidade dos problemas com que nos deparamos”, resumiu ele em conversa com a Folha de S.Paulo por videoconferência.

“O que se perde com esse tipo de exercício é muito pouco – em geral estamos apenas deixando os detalhes de fora.”
Traçar o caminho que conduziu ao surgimento de cérebros autoconscientes envolve, em primeiro lugar, um raciocínio fundado na teoria da evolução e, portanto, um esforço para evitar a mania humana de se colocar no alto do pódio dos seres vivos, diz o neurocientista.

Damásio faz questão de ressaltar que mesmo bactérias e plantas são possuidoras de formas sofisticadas de inteligência, que são implícitas e não envolvem o aparecimento de uma mente, mas ainda assim lhes permitem captar o que acontece no ambiente ao seu redor e enfrentar os desafios presentes nele.

Ele destaca o intrigante fato de que certos anestésicos também têm efeito sobre vegetais, embora as plantas não tenham sistema nervoso nem sintam dor. “Isso tem a ver com o fato de que esses anestésicos funcionam num nível biológico muito mais profundo que o da consciência”, explica.

“Criaturas vivas como as plantas são capazes de ‘sensing’, como se diz em inglês, o que é diferente de sentir conscientemente. Elas respondem à temperatura, à umidade e aos nutrientes do solo, mas não precisam representar mentalmente tudo isso.”

Galeria Veja fotos do neurocientista António Damásio É autor de livros como “O Erro de Descartes”, “Sentir e Saber: As Origens da Consciência” e “E o cérebro criou o homem” https://fotografia.folha.uol.com.br/galerias/1732629877241571-veja-fotos-do-neurocientista-antonio-damasio * Em dado momento da evolução dos seres vivos com muitas células, a seleção natural levou alguns a adotarem a estratégia do “sensing” sem sentimentos (é o caso das plantas e dos fungos), enquanto outros, os ancestrais dos animais, passaram a desenvolver sistemas nervosos e a capacidade de ter sentimentos e emoções. Para Damásio, é essa capacidade, e não a racionalidade tipicamente humana, a principal responsável pelo surgimento da consciência.

“Os sentimentos são uma maneira que o organismo tem de informar a nós mesmos que estamos vivos e precisamos salvar a nossa própria. Os sentimentos de dor, de fome, de bem-estar ou mal-estar estão a nos informar diretamente sobre as condições da nossa existência e permitem que tomemos decisões sobre a nossa vida”, diz ele. Essa é uma das razões por trás do fracasso da criação de inteligências artificias semelhantes à humana: sem sentimentos e emoções, a consciência dificilmente vai emergir.

Para Damásio, essa trajetória evolutiva dos cérebros conscientes deixa claro que existe muita continuidade entre a consciência humana e a dos animais.
“Uma coisa à qual comecei a dar atenção especial é a ligação íntima entre a consciência e o sentimento, e um dos mais profundos e importantes é o da dor”, afirma.

“Sabemos que, tal como nós temos dor, os animais que estão à nossa volta têm evidentemente algo muito parecido ou mesmo igual. É preciso pensar duas vezes, e pensar nessa semelhança, antes de nos dar a autoridade de induzir esse tipo de coisa em outros seres vivos.”

 

Foto do destaque: Tânia Rêgo-ABr/Divulgação

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