LUCAS BRÊDA
FOLHAPRESS – “Se eu fizer o que tenho de fazer, as pessoas vão dizer ‘lembra aquele cara que só fazia umas batidas para os outros?'”, diz Kanye West, de moletom e boné vermelhos, numa entrevista à MTV no início dos anos 2000. Àquela altura, ele já tinha produzido hits de Jay-Z e trabalhado com Mos Def e Talib Kweli, mas não conseguia assinar um contrato com uma gravadora para atuar não só fazendo os instrumentais, mas rimando e lançando suas próprias músicas.

A cena está em “Jeen-Yuhs”, documentário com mais de quatro horas de duração sobre West –chamado agora só Ye, seu apelido. A primeira das três partes chegou à Netflix nesta quarta-feira. Antes de ir à TV ou gravar clipes, a primeira câmera para a qual o artista quis aparecer foi a de Clarence Simmons, seu amigo de Chicago, mais conhecido como Coodie, que o filmou por mais de 20 anos e só agora torna o material público.

O Kanye que surge na primeira parte de “Jeen-Yuhs” é um nerd de música ambicioso e arrogante que se muda para Nova York em busca dos sonhos de se tornar um astro. Antes, em Chicago, ele já tinha participado do grupo de rap Go Getters, aprendido a fazer batidas com o renomado produtor conterrâneo No ID e antes dos 20 anos já era conhecido na cena local como um beatmaker talentoso.

Foto: Foto: Site Oficial | Kanye West / The Music Journal

Coodie, que assina “Jeen-Yuhs” ao lado do parceiro criativo Chike Ozah, como Coodie & Chike, era comediante e fazia o programa “Channel Zero”, sobre hip-hop, na TV local. Ele se tornou amigo de West e se mudou com ele para Nova York, também indo atrás do próprio sonho de trabalhar como diretor.

As imagens de Coodie, que também narra o documentário, revelam o “antigo Kanye”, cantado por ele mesmo na música “I Love Kanye”, aquele que usa a famosa camisa polo cor-de-rosa e está desesperado para conseguir deslanchar sua carreira. Ele aparece em seu apartamento, que tinha uma mesa de sinuca ao lado de um estúdio caseiro, onde criava as músicas que viriam a integrar seu disco de estreia, “The College Dropout”, hoje um clássico, que mudaria os rumos do hip-hop nos anos 2000.

As cenas mostram um Kanye West que já atuava para as câmeras, mas longe da celebridade controladora e obcecada com a própria imagem –e que aprendeu a usar essa imagem, para o bem e para o mal, como ninguém. Não foi à toa que nas últimas semanas ele ameaçou trabalhar contra o lançamento do filme, exigindo ver o corte final para aprovar como sua imagem seria usada pelos diretores e pela Netflix.

É curioso ver um artista hoje tão famoso e celebrado sendo esnobado enquanto mostrava suas músicas autorais a funcionários da gravadora Roc-A-Fella, de Jay-Z e Dame Dash, com quem West assinaria contrato depois de anos sendo cozinhado –eles o queriam como produtor e compositor, mas ele era nerd demais e esquisito demais para estar à frente do microfone. E Coodie está lá em todos esses momentos com sua câmera.

Mais interessante que ver o jovem West em sua intimidade, é notar como sua autoconfiança vem da mãe, Donda, que dá nome a seu mais recente álbum e aparece com o filho em Chicago. “Você está dizendo que eu sou arrogante?”, ele pergunta a ela num diálogo, quando Donda, professora de inglês que tinha uma crença inabalável no talento do filho, tenta explicar a ele as diferenças entre acreditar em si mesmo e não ser humilde.

A primeira parte de “Jeen-Yuhs” também tangencia as razões que fizeram de Ye um artista tão importante. Como diz a ele um executivo de gravadora que promete –sem sucesso– um contrato, West conseguia “unir a cultura da rua com alta moda”, apesar de parecer um iniciante pedante que quer a todo custo mostrar sua arte para o mundo.

Ele era ao mesmo tempo a pessoa que acelerava samples e forjava as batidas que faziam qualquer um balançar a cabeça e a que tinha um humor peculiar nas rimas que o diferenciava dos MCs mais durões, conectados com as ruas. Essa sensibilidade é a cola, por exemplo, de “The College Dropout” e “Late Registration”, seus primeiros álbuns.

Muito da inovação que West trouxe –primeiro ao hip-hop, depois à música no geral– também passa pela própria personalidade dele, que não se encaixava no gangsta rap que havia dominado os anos 1990, embora fosse completamente calcada no espírito da cultura hip-hop. Outra faceta destacada é sua sede por ser um vanguardista, acreditando desde cedo ser diferente de todos. No caminho até o metrô, costumava ensaiar os discursos para quando ganhasse o Grammy, por exemplo.

Numa cena, ele aparece dizendo que fazia suas batidas pensando em qual rapper iria rimar sobre elas, num esboço do estilo de fazer música que ele carrega consigo até hoje e que permanece extremamente influente. West cria canções costurando ideias, sejam elas samples de músicas já gravadas ou estrofes e refrões feitos para ele por artistas convidados sob seu comando –além, claro, das rimas, batidas e arranjos próprios.

Ou seja, se precisa de um refrão sugestivo, ele pode reaproveitar um verso de Lauryn Hill (como em “All Falls Down”), mas, se for o caso de algo mais doce e melódico, ele pode chamar Adam Levine, do Maroon 5 (“Heard ‘Em Say”), para fazer isso para ele. West não precisa cantar ou compor os arranjos de uma música para que ela seja indubitavelmente sua. É a reunião daquelas ideias, e o que elas representam juntas, que dão identidade à obra.

Na primeira parte de “Jeen-Yuhs”, ele surge como um produtor que queria se tornar rapper e, mesmo quando assumiu o protagonismo no palco e no estúdio, continuou sendo exatamente isso, e nessa ordem. Ainda que gente como Dr. Dre já tivesse feito esse movimento, da mesa de som para o microfone, nos anos 1990, o que West tinha na cabeça era algo diferente, e ele já sabia disso desde muito cedo.

As outras duas partes de “Jeen-Yuhs” chegam ao streaming nas próximas semanas, destacando a escalada do rapper ao sucesso mainstream, e depois a queda até o colapso mental que ele sofreu durante a turnê de “The Life of Pablo”, de 2016. Segundo revelou ao New York Times, Coodie foi se afastando de West conforme ele foi ficando mais e mais famoso, mas retomou o contato com ele nos últimos anos, obtendo material mais recente para o filme, que deveria ter saído no começo dos anos 2000 e ficou engavetado até hoje.

Sem a pretensão de seu personagem principal, “Jeen-Yuhs”, pelo menos na primeira parte, chega muito perto de um artista que, apesar de ter seus passos acompanhados religiosamente pela mídia, faz de tudo para se apresentar ao público como uma espécie de super-herói, alguém que transcende a vida profana. Há 20 anos, West era só um jovem artista que celebrava para as câmeras que aquelas imagens eram de um documentário sobre ele.

O que conecta tudo é a relação pessoal dos dois, que deve se desenvolver nos próximos capítulos. Não se trata de uma obra definitiva sobre a história de West e sua importância para a música, a moda e o comportamento, mas a visão de um cineasta sobre seu mais talentoso amigo da adolescência –e, por isso mesmo, diferente de tudo que foi feito sobre ele.

JEEN YUHS: UMA TRILOGIA KANYE
Quando: Primeiro episódio disponível a partir de quarta (16), o segundo no dia 25 e o terceiro em 3 de março
Onde: Netflix
Direção: Coodie & Chike

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