BUENOS AIRES, ARGENTINA (FOLHAPRESS) – O visitante sai do aeroporto internacional, pega um táxi e sobe o viaduto em direção à parte mais turística da cidade. No caminho, é surpreendido pelo mar de casas de tijolos e pelas roupas em varais que margeiam a via expressa. O cenário lembra favelas brasileiras, mas é a Villa 31, em Buenos Aires.

“Há uns 20 anos aqui era só um ou dois andares, agora são cinco ou seis”, diz o arquiteto e líder comunitário Cesar Sanabria, 39, apontando para uma pilha de construções coloridas, acopladas a escadas em forma de caracol que trepam pelo lado de fora e ligam um andar ao outro.

Uma das mais conhecidas favelas da Argentina, a Villa 31 hoje se junta a outros 5.686 chamados “bairros populares” espalhados pelo país, metade deles surgida nas últimas duas décadas.

Com taxas de pobreza em alta, o país consolida seu processo de “favelização” e espelha um fenômeno antigo e também crescente no Brasil. Experientes na área, brasileiros levam empreendedorismo social ao país vizinho.

Se em 2016 estimava-se que 3,5 milhões de argentinos viviam nessas áreas, hoje são 5,2 milhões, segundo o Ministério de Desenvolvimento Social. O país tem 46 milhões de habitantes.

Entende-se como bairro popular um grupo de ao menos oito famílias em que mais da metade não tem título de propriedade nem acesso a alguns serviços básicos.

“É possível dizer tranquilamente que aqui está acontecendo o que aconteceu na Rocinha, na Cidade de Deus, na década de 1990”, diz o cientista político argentino Martin Maldonado. Ele analisa a pobreza em ambos os países como pesquisador do Conicet (Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas).

Maldonado se refere ao momento em que essas comunidades se expandem tanto que começam a gerar uma gama de relações muito mais complexas, internas e incontroláveis, como uma cidade dentro da cidade.

“Os dois países passaram por três fases: a de ignorá-las, a de combatê-las e agora a de tentar incorporá-las”, afirma, lembrando que a escala é diferente pelo tamanho das populações.

Apesar das semelhanças —como a falta de serviços básicos e a predominância de mulheres chefes de família—, as comunidades das grandes cidades brasileiras e argentinas vivem algumas diferenças importantes. A começar pelo tráfico de drogas, que no país vizinho também existe, mas não exerce um controle territorial tão profundo.

Enquanto o Brasil tem favelas gigantes, formadas por uma maioria negra e por famílias que já estão na quinta ou sexta geração, a Argentina tem áreas de pequeno ou médio porte, repletas de migrantes —sobretudo paraguaios, peruanos e bolivianos que chegaram na época de pujança econômica— e com maior organização política.

O poder de compra é hoje outro ponto de diferença, diz o gaúcho Vinicius Mendes Lima, fundador da agência de fomento social Besouro, que atua nos dois países para mitigar esse processo de desigualdade.

“A cesta básica ou o aluguel na Argentina consome praticamente todo o salário mínimo. Carne vermelha quase não se come mais. No Brasil, ainda se comem as partes não nobres, uma ou duas vezes por mês”, compara.

O empresário, que estudou os casos da Rocinha e da Villa 31, também afirma que falar sobre empreendedorismo em favelas ainda é algo relativamente novo na nação vizinha e que, nesse ponto, a experiência brasileira poderia contribuir.

“O brasileiro é bastante criativo e mais tecnológico”, afirma ele, lembrando que o investimento social de empresas secou com a crise argentina.

A agência já atendeu 1.500 alunos, presencialmente ou online, na Argentina, em treinamentos em gestão de pequenos negócios. Empresas e instituições são procuradas para financiar as turmas.

Rosana Suaréz, 42, foi uma das que participaram do seu treinamento na Villa Soldati, comunidade nas bordas de Buenos Aires. A cozinheira, que é analfabeta e começou a trabalhar no campo aos 6 anos, hoje tem um refeitório popular e também vende de comida a meias.

“Antes não sobrava, não sabíamos se estávamos ganhando ou perdendo. Agora aprendemos a calcular”, conta ela, que voltou à escola.

Em meio às iniciativas sociais, os problemas na Argentina se avolumam.
A situação foi agravada pela pandemia e pelas sucessivas crises econômicas, incluindo a atual, com uma inflação que fez os preços subirem 113% em 12 meses, até julho. Se a nação vizinha tinha 26% de pobres em 2012, passou a ter 43% em 2022, segundo dados da Universidade Católica (UCA).

MAIORIA NÃO TEM ACESSO A SERVIÇOS FORMAIS

% de bairros populares segundo a situação predominante
Esgoto em fossa simples ou séptica – 92
Gás de cozinha de botijão – 87
Conexão irregular de luz – 58
Conexão irregular de água – 57
Calefação por lenha ou carvão – 37
Fonte: Registro Nacional de Barrios Populares (Renabap)
“Um quarto com banheiro compartilhado aqui custava 15 mil pesos, agora está mais de 70 mil”, conta Paola Suares, 32, sócia de um salão de beleza na Villa 31. Ela precisou dobrar as horas trabalhadas nos últimos tempos para chegar ao fim do mês.

Suares apresenta Nilda Romero, 57, que está considerando fechar seu açougue: “O aluguel está caro, e as pessoas não estão mais comprando tanta carne”, diz.

Tudo ocorreu mais tarde na nação vizinha, segundo Maldonado.
O cientista político afirma que, diferentemente do Brasil, as ocupações mais recentes na Argentina não foram espontâneas, e sim fruto do fortalecimento de movimentos sociais organizados, que passaram a reivindicar o direito à moradia a partir da grande crise de 2001 —marcada pelo congelamento das poupanças e a renúncia do ex-presidente Fernando de la Rúa.

Já no Brasil, as primeiras favelas surgiram em 1900, quando a Argentina ainda tinha um PIB (Produto Interno Bruto) per capita maior do que o de Alemanha, França e Itália. Na Argentina, elas só se consolidaram em 1960, com uma alta demanda de mão de obra para a industrialização após o governo de Juan Domingo Perón.
Os processos, porém, são parecidos.

Os aglomerados surgem com a migração do campo para a cidade e vivem uma explosão social na década de 1990, com a desindustrialização mundial, a falta de empregos e uma visão liberal de combate à favela. Já nos anos 2000, uma onda de esquerda na América Latina espalha a ideia de integrar esses espaços, diz Maldonado.

Nas “villas” e nos bairros populares da Argentina, essa urbanização só foi se consolidar em 2017, quando o ex-presidente Mauricio Macri, pressionado por movimentos sociais, decretou a criação do censo oficial e a emissão de certificados de moradia às famílias que permitiram acesso a serviços como luz, água e esgoto.

É o caso da Villa 31, onde dezenas de pedreiros de cooperativas estão reformando as fachadas das casas, em um convênio com o governo de Buenos Aires. Mas, assim como no Brasil, está mais para exceção do que regra.

“Se vive muito bem aqui na capital, mas se você cruza a ponte da província é outro mundo”, diz a comerciante Susana Maiz, 48, que fez o caminho inverso quando era adolescente.

Maldonado, porém, pondera que a solução para a vulnerabilidade social dentro desses territórios tem de ser estrutural.

“As grandes cidades latino-americanas terão de responder a uma pergunta importante em um futuro próximo: como farão quando houver mais favela que cidade?”, questiona.

Foto de destaque:  Nathana Rebouças na Unsplash

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