EDUARDO CUCOLO
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O risco de descontrole das contas públicas cresceu de forma significativa, devido à relutância do Executivo e do Legislativo em respeitar o teto dos gastos em 2021. Isso tem se refletido em uma desvalorização adicional do real, na contramão da recuperação do valor de outras moedas mundiais, e impede uma queda maior dos juros.
A avaliação é do economista-chefe do Citi Brasil, Leonardo Porto, que falou sobre as novas projeções divulgadas pelo banco em seu relatório global. Segundo ele, o país precisa avançar no controle da Covid-19 para encerrar o gasto com o auxílio emergencial e retomar o ajuste fiscal.
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Pergunta – O que mudou na visão sobre a economia brasileira no último relatório do Citi?
Leonardo Porto – São três mensagens. O risco fiscal está crescendo de forma significativa nos últimos meses, o que está ligado a uma postura ainda errática e ambígua do governo e do Congresso em relação ao teto de gastos.
A segunda mensagem é que isso está sendo precificado. A taxa de câmbio bateu por volta de 8 de junho em R$ 4,82. De lá pra cá, os preços das commodities subiram, o dólar perdeu valor em relação às principais moedas, a aversão ao risco global caiu, mas o câmbio está pelo menos 10% mais depreciado do que estaria quando se olha só fatores globais. É evidente que os ativos aqui estão perdendo valor por fatores domésticos.
A terceira mensagem é que a gente revisou o PIB de -6,5% para -6%. A razão é basicamente a previsão do segundo trimestre, que passou de uma queda de 9,5% para -9%. Vai ser uma queda sem precedentes, mas um pouco menor do que a gente imaginava.
É possível cumprir o teto e conter a dívida mesmo com a pandemia?
LP – Nossa previsão de dívida bruta/PIB está em 97,5% para o final deste ano e 99% para 2021. Na previsão de 2020 a gente incluiu R$ 100 bilhões de renovação para o “coronavoucher”, o que pode significar, por exemplo, mais duas parcelas de R$ 600 ou quatro de R$ 300. Também está embutida a hipótese de que, em 2021, muda a chavinha e o governo vai respeitar as restrições do teto de gastos.
A dívida no ano que vem cresceria pouco, você teria uma política fiscal altamente contracionista, as medidas de combate ao coronavírus seriam revertidas, o estado de calamidade pública acaba.
Não está se falando muito, mas nos parece que o controle da doença é uma condição necessária para que você implemente uma política fiscal contracionista. Se não tiver a doença sob controle, o “coronavoucher” vai ter de ser estendido por tempo indefinido. Condição necessária não é suficiente. Teria de ter outros elementos, como a disposição do governo e do Congresso em reverter essas políticas e perseguir o teto.
A situação do Brasil é pior que a de outros países que também tiveram de aumentar o endividamento?
LP – No Brasil, claramente a gente vê o número de mortes na casa de mil por dia desde o final de maio. Não consigo achar paralelo em outros países. E isso está gerando uma crise no mercado de trabalho brutal.
A taxa de desemprego de pouco mais de 13%, vindo de cerca de 11,5% em fevereiro, está mascarada pelo fato de que as pessoas não estão procurando emprego.
Isso é reflexo da falta de controle da doença, que fez com que tivéssemos de tomar medidas de isolamento social que jogaram a atividade econômica lá pra baixo. É por isso que dizemos que, se não controlar a doença, as restrições pelo lado da oferta, para que a economia se recupere, vão continuar. Você não vai conseguir recuperar 10 milhões de empregos perdidos e não pode deixar as pessoas sem suporte. Como o custo do “coronavoucher” é absurdamente elevado, não dá para ter uma política fiscal contracionista se não controlar a doença.
Controlar significa ter a vacina ou há medidas que permitiriam uma retomada mais rápida?
LP – Controlar a doença é ter, pelo menos, segurança de que você está em uma trajetória cadente no número de mortes e de casos. Não estou necessariamente falando de vacina. Você pode ir liberando as restrições pelo lado da oferta se tiver testagem em massa, isoladamente das pessoas contaminadas, protocolos rígidos de abertura. Enquanto essas restrições estiverem presentes, sejam elas escolas que não podem abrir ou as pessoas que não querem pegar avião por medo de se contaminar, você não consegue retornar ao que era antes.
Hoje, certamente a gente não está com a doença sob controle, ao contrário de alguns países desenvolvidos que trouxeram a curva de mortes para baixo, principalmente europeus, e iniciaram um processo de abertura. Escrevemos em junho que o Brasil estava iniciando um processo de abertura com risco de ser prematura, bem mais arriscada do que em outros países.
Voltando à questão fiscal, quais as chances de aprovar reformas que ajudem no controle de gastos no atual governo?
LP – Falta um direcionamento mais claro sobre a agenda de reformas. Antes da pandemia, o governo tinha entregue três PECs no Senado, a Emergencial, a do Pacto Federativo e a dos Fundos.
A gente achou que ia ser a prioridade. Prometeu ainda a reforma administrativa. Aí começou a pandemia, a discussão ficou suspensa, o governo começou a tocar no assunto da reforma tributária, esqueceu as três PECs e aparentemente desistiu da administrativa. A gente não espera que a reforma tributária seja aprovada neste ano. É um desafio muito grande conseguir aprovar no ano que vem.
É desejável que o governo mude a estratégia, que dê uma mensagem de austeridade para o médio e longo prazo. Essa mensagem pode ser recuperar a prioridade das PECs Emergencial e do Pacto Federativo, que tocam no aperfeiçoamento da política fiscal, na criação de gatilhos caso o teto dos gastos não seja respeitado.
Há muita pressão, inclusive dentro do governo, para rever o teto de gastos
LP – Estou vendo alguns economistas pedindo para que o teto seja reformado, porque tem imperfeições.
Não estou dizendo que o teto é perfeito, mas ele é hoje o único muro de contenção da política fiscal. A gente não vai ter meta de resultado primário no ano que vem. A gente tem de assegurar, não só para o estrangeiro, mas para qualquer investidor, que a política fiscal e a dívida pública são sustentáveis. Quem faz isso é o teto de gastos, é a âncora que hoje está valendo. Então é hora fortalecer o teto, não é hora de enfraquecer o teto.
As notícias que aparecem nos jornais e na classe política são na direção de enfraquecer, para que a política fiscal possa ser mais frouxa no ano que vem, e isso é péssimo. A situação fiscal é extremamente delicada. Falar em dívida de 100% do PIB para um país emergente não é normal.
Mesmo com juros baixos no Brasil e vários países elevando o endividamento por causa da pandemia?
LP – Sim. O Banco Central está fazendo um trabalho extraordinário e tem consciência de que, se não tiver a âncora fiscal, essa taxa de juros é insustentável. O BC está falando isso, está na ata [do Copom], no Relatório de Inflação. É a razão pela qual o BC está sendo cauteloso.
A taxa de juros Selic está hoje em 2% porque estamos vivendo a recessão mais profunda da nossa história. Se a gente não garantir que a dívida é sustentável no médio e longo prazo, essa taxa de juros vai ser transitória. A política monetária é dependente da política fiscal.
O BC não tem espaço para cortar mais os juros?
LP – A gente tem uma visão de que a Selic fica em 2% até o final do ano que vem. Isso está associado à hipótese de que o teto de gastos vai ser respeitado. As projeções de inflação do BC estão abaixo do centro da meta. Tecnicamente, espaço para cortar um pouco mais tem. A indicação [do BC] é que talvez seja melhor esperar para ter mais confiança de que a política fiscal vai continuar sustentável.
O que motivou a revisão das projeções para o PIB?
LP – A revisão é basicamente focada na expectativa nossa para o PIB do segundo trimestre. Praticamente não mudamos nossa visão para os trimestres posteriores, de que a recuperação da economia não vai ser em “V”, vai acontecer de forma gradual. A gente espera uma queda de 9% no segundo trimestre, crescimento de cerca de 3% no terceiro e 1% no quarto.
Pelo lado de demanda, um dos fatores que têm ajudado bastante a ter uma demanda um pouco mais forte é o “coronavoucher”, mas é uma solução que não é sustentável no tempo, porque tem um custo fiscal absurdamente alto. A perda de emprego continua subindo a cada mês. Isso vai minando aos poucos a capacidade da demanda de ficar sustentável, além do aumento de endividamento de algumas empresas e pessoas.
A desvalorização cambial pode representar alguma ameça para os preços?
LP – Esse câmbio que depreciou desde o começo de junho até agora, de R$ 4,80 para R$ 5,50, tem um conteúdo inflacionário bem maior que a depreciação de antes de R$ 4,00 para R$ 4,80. Essa depreciação mais recente ocorreu concomitantemente a uma alta de preços de commodities lá fora, enquanto antes foi uma depreciação concomitante a uma queda no preço de commodities.
Esse conteúdo inflacionário maior é por causa do preço de [produtos] comercializáveis, como alimentos, combustíveis. Só não está tendo maiores preocupações porque a inflação de não-comercializáveis, que é a parte de serviços, está altamente deprimida ainda. O IGP-M, que tem um conteúdo de comercializáveis muito maior que o IPCA, vai bater em dois dígitos na inflação dos últimos 12 meses. Só em agosto, a inflação vai ser mais de 2%. O IPCA está rodando na casa de 0,20%.
Isso não afeta ainda o cenário inflacionário de forma significativa porque a gente tem uma economia que está sob restrições muito grandes no setor de serviços e isso contém o IPCA como um todo. A gente tem projeção de 2% de IPCA em 2020 e 3,4% no ano que vem.