FERNANDA BRIGATTI

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Quando Caio Lima Rezende, 32, foi selecionado para trabalhar em um grande escritório de advocacia em Brasília (DF), achou que estava com a vida feita. “Agora é só fazer o dever de casa. Trabalhar direitinho que tudo está encaminhado.”

A ilusão durou menos de duas semanas.

Ainda nos primeiros dias, percebeu que a rotina era bem mais intensa do que havia imaginado. Cada estagiário recebia muitos pedidos de petições por dia. A primeira bronca não demorou.

“Pediram que eu distribuísse uma petição no fim do dia e eu precisava usar o acesso do meu chefe para fazer isso. Quando cheguei, no dia seguinte, foi a primeira coisa que procurei fazer, mas descobri que outro estagiário já tinha feito. O advogado explodiu, foi horrível”, conta.

Alguns anos depois, já em outro escritório, Rezende conta ter sido assediado. Quando teve o que chamou de “dia do surto”, ouviu de um colega que não era a primeira vítima.

O estudante de direito diz que os escritórios têm condutas muito parecidas: “Não existe horário de trabalho, há uma demanda absurda. São moedores de gente mesmo. Acho que eles olham o número de cursos de direito e calculam que tanto faz um ou outro desistir. Humilhação é uma coisa naturalizada”.

Rezende desistiu. Ao menos dos escritórios grandes.

Agora no último semestre -ele precisou trancar a matrícula por um tempo-, faz estágio em um escritório menor, em uma rotina mais saudável.

Os planos para o futuro miram pessoas que, como ele, se sentiram desamparadas quando a ilusão do sucesso profissional se desfez. “Quero atuar pro bono [voluntariamente] para quem quiser processar esses escritórios. Sabemos que quem faz isso fica marcado, mas eu não quero nunca mais pisar em um lugar desse.”

MÃO DE OBRA BARATA

Na avaliação do procurador do trabalho Gustavo Rizzo Ricardo, coordenador do GT Estagiários da Conafret (Coordenadoria Nacional de Combate às Fraudes nas Relações de Trabalho), há no Brasil uma tendência de o estagiário ser tratado como mão de obra barata. Algo que, face à legislação trabalhista, é fraude.

“Há um problema de conceituação. O estágio não é um emprego, mas é trabalho. A lei é muito clara quanto a ser um período educativo”, diz o procurador. “[A lei] não fala que o estagiário pode ter obrigações excessivas ou prazo para tarefas. Como você pode punir quem você ainda está educando?”

Para Rizzo, não se trata de excluir a responsabilidade na atividade de estágio, mas de enquadrá-la corretamente. “Se o assédio moral não é aceitável em nenhuma relação, que dizer do assédio a um trabalhador que está em processo de aprendizagem?”, questiona.

Não é que os escritórios ignorem o risco de processos, já que eles próprios são autores de milhares. Há, porém, um esforço velado de coibir a judicialização daquilo que, segundo relatos ouvidos pela reportagem, é naturalizado nos escritórios, especialmente em grandes bancas.

A advogada júnior Patrícia (nome fictício, a pedido dela) conta que, no grupo de WhatsApp do escritório em que trabalhava, era comum que supervisores e sócios compartilhassem sentenças de segundo grau de ações contra a empresa. Para ela, as mensagens chegavam como um recado, o de que eventuais ações terminariam mal para ex-funcionários.

Hoje, muitos meses depois de sua demissão de outro grande escritório, ela ainda guarda raiva pelo que considera um ano de terror e humilhação.

O que era para ser uma oportunidade saudável para quem estava começando virou um acúmulo de horas extras, cobranças, erros e frustrações. A pressão, conta a advogada, a levou a desenvolver um quadro de ansiedade e depressão, atualmente controlado à base de medicamentos e terapia.

Para a profissional, a agressividade de condutas autorizadas nesses escritório esconde ainda uma contradição: entre os funcionários, gritaria, em público, ações de prevenção ao suicídio, como em campanha pelo setembro amarelo.

TENTATIVA DE SUICÍDIO

Nas últimas semanas, uma campanha semelhante ao #MeToo se espalhou pelas redes sociais: estagiários e ex-estagiários passaram a compartilhar suas experiências em escritórios e departamentos jurídicos de empresas e órgãos públicos, em relatos de desrespeito à Lei do Estágio, assédio moral e sexual e mesmo intimidação a quem decidisse expor irregularidades e ilegalidades.

O gatilho para essa onda de exposições -muitas delas feitas apenas de maneira anônima- foi a tentativa de suicídio de um estudante de direito durante o horário de trabalho em um renomado escritório em São Paulo, o Mattos Filho.

O escritório falou do assunto apenas por meio de nota, na qual lamentou o ocorrido. Disse também que a prioridade, no momento, era acolher o jovem, a família e os colegas de trabalho, zelando pela privacidade e respeito aos envolvidos.

Internamente, começou a rever procedimentos e criou comissões para analisar como vem sendo o trabalho de seus cerca de 300 estagiários. Não falou, porém, das acusações de assédio moral que acompanharam os relatos sobre o colega e que ainda circulam por redes sociais e em grupos de WhatsApp.

O caso está sendo acompanhado pelo Ministério Público do Trabalho.

A presidente da Comissão de Estágio e Exame de Ordem da OAB-SP, Ana Claudia Scalquette, afirma que a seccional está acompanhando todas as manifestações, mas que até o momento não houve qualquer pedido de providência. A OAB-SP diz também que não tem competência para monitorar as condições de estágio em escritórios, mas que tem se dedicado a aproximar esses estudantes das entidades de classe.

PROFESSORES E ADVOGADOS COBRAM NOVA POSTURA

Para um grupo de professores da USP e da FGV Direito, há nos relatos o pano de fundo da cultura profissional da área do Direito, algo que, segundo eles, precisa ser rediscutido.

Eles assinaram um artigo no Jota (startup de mídia especializada no noticiário jurídico) no qual dizem que muitos dos que comandam hoje as grandes bancas jurídicas adotam posturas que ignoram as diferenças geracionais e as mudanças pelas quais a atividade da advocacia e a educação passaram nos últimos anos.

Para esses professores, o argumento de que “sempre foi assim” busca “ao mesmo tempo romantizar o seu passado e ignorar a realidade presente diante de sucessivos casos que revelam a precariedade da saúde mental de tantos jovens”.

O artigo é assinado pelos professores Rafael Mafei (USP), Tathiane Piscitelli (FGV), Mariangela Magalhães Gomes (USP), Conrado Hübner Mendes (USP), Sheila Neder Cerezetti (USP), Susana Henriques da Costa (USP), Eloísa Machado (FGV) e Flávio Roberto Batista (USP, e também procurador federal).

OUVIDORIA DO ESTÁGIO

Lara Santos, da gestão do Centro Acadêmico XI de Agosto, da Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo), diz que é necessário romper um pacto de silêncio que prevalece entre os estudantes.

O centro acadêmico deu início a uma campanha batizada de Estágio Digno. Na quinta (1º), uma audiência pública debateu saúde mental e dignidade. Outros centros acadêmicos, como o 22 de Agosto, da PUC-SP, e o João Mendes Júnior, do Mackenzie, também participaram.

Os escritórios Mattos Filho, Pinheiro Neto, Demarest, Pereira Neto|Macedo e PG Law mandaram representantes. Ao todo, 26 bancas foram convidadas. Também estiveram presentes o Sindicato dos Advogados de SP, OAB-SP, Defensoria Pública, Ministério Público do Trabalho e a direção da Faculdade de Direito.

Segundo os estudantes, o encontro foi um primeiro passo para discutir soluções conjuntas. Os escritórios também se dispuseram a participar de grupos de discussão a serem criados para tratar do assunto.

“A exploração de estagiários não pode ser recompensada com happy hour, festa de fim de ano, bombom sobre a mesa”, disse Murilo Nunes, presidente do CA do Mackenzie.

Os estudantes da PUC-SP fecharam uma parceria com o escritório Claro Serrano, que tem um projeto de mapeamento de assédio moral e sexual no trabalho, e preveem a realização de palestras sobre saúde mental.

O CA da USP propõe a criação de uma ouvidoria com representantes dos estudantes. Eles afirmam que denúncias feitas apenas aos organismos de compliance dos escritórios podem acabar se voltando contra as vítimas se suas queixas chegarem aos sócios das bancas.

Lara Santos diz que os estudantes têm medo de que os escritórios mantenham um registro de estagiários considerados problemáticos.

“A pessoa está no 4º, 5º ano da graduação, pensando em uma carreira. Imagina a pressão e o medo de falar enquanto se submete a cargas horárias que impedem até mesmo de participar das atividades acadêmicas”, diz.

SAÚDE MENTAL

A psicóloga Milene Rosenthal, da clínica digital Telavita, diz que o estágio costuma acontecer em um momento importante de maturação emocional. “Quando eles chegam à empresa estão cheios de ansiedade e expectativas, medo de errar. É todo um mundo novo para quem ficou anos no núcleo familiar.”

Para a profissional, é importante ter em mente que transtornos mentais mais graves não se desenvolvem de um dia para o outro. Casos mais extremos, como o de uma tentativa de suicídio, são comumente decorrentes de transtornos ainda não diagnosticados ou tratados corretamente.

Para o diretor-geral do Empregos.com.br, Leonardo Casartelli, o cuidado com a saúde mental dos trabalhadores, potencializado pela pandemia, começa a chegar também aos estudantes. O problema, afirma, é como as empresas veem esses empregados.

“Muitas contratam o estagiário imaginando que ele tenha entregas de qualidade igual ou superior a de outros funcionários efetivos -e ele é cobrado por isso, o que pode gerar algum tipo de pressão psicológica, sobretudo quando está trabalhando a distância, sem suporte.”

OUTRO LADO

A reportagem procurou nove dos maiores escritórios (Demarest, Felsberg, TozziniFreire, MachadoMeyer, Veirano, Pinheiro Neto, Nelson Wiliams, Mattos Filho e Bichara) para saber suas políticas de estágio. Somente um respondeu, o Demarest.

Nele, trabalham hoje 73 estagiários, dos quais 70 em áreas jurídicas. Segundo o escritório, os estudantes cumprem apenas a carga horária prevista em lei, de seis horas diárias. A jornada é flexibilizada nas semanas de prova e uma semana antes da prova da OAB, eles ficam dispensados do trabalho.

O Demarest diz manter políticas rígidas de prevenção a abusos e assédio; há um canal de denúncias aberto a todos os funcionários.

Segundo a administração do escritório, desde o início da pandemia houve um reforço nas políticas de saúde mental, com a criação de um canal de apoio e acolhimento e a implementação de um programa voltado ao equilíbrio entre a vida pessoal e profissional.

O escritório diz ter reforçado, há alguns dias, aos seus advogados em início de carreira e estagiários, a existência dessas políticas, o canal de denúncia e a disposição para acolher temáticas de saúde mental. Esses profissionais mais jovens estão organizados em um grupo batizado de D Futuro, que mantém encontros e são acompanhados pelos sócios.

Foto: Pixabay
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