FRANCESCO PERROTTA-BOSCH
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Feitas por mulheres, mas sem explícitos traços de delicadeza. À primeira vista, aparentam ser edificações brutas, talvez mesmo musculosas. Contudo, quem permanece nessas construções presencia momentos de ternura. Os projetos arquitetônicos das irlandesas Yvonne Farrell e Shelley McNamara, as vencedoras do prêmio Pritzker deste ano, não se encaixam em estereótipos fáceis de autoria feminina.

Yvonne Farrell e Shelley McNamara, as vencedoras do prêmio Pritzker deste ano. Foto: Reprodução

A principal láurea da arquitetura havia sido entregue pela última vez a uma mulher há três anos, quando a espanhola Carme Pigem compartilhou a honra com seus sócios homens do RCR Arquitectes. É preciso voltar até 2004, quando Zaha Hadid recebeu o Nobel arquitetônico, para rememorar a então única vez que o sexo feminino tinha sido exclusivamente agraciado em uma edição.
Além da escassez de premiadas, o Pritzker tem uma problemática com gênero desde 1991. Na ocasião, Denise Scott Brown foi esquecida na vitória de seu sócio e marido Robert Venturi, apesar de assinarem juntos vários projetos e livros.
Até meados da década passada, o escritório Grafton Architects de Farrell e McNamara passava despercebido nos meios arquitetônicos. Vivendo em Dublin, a dupla estava longe dos holofotes das celebridades; não tinha forte atuação política nem mesmo no próprio país; pouquíssimos projetos haviam sido publicados e nunca pretenderam ser notáveis teóricas.

Foto: Reprodução

O protagonismo recente se deve ao impactante projeto da Universidade de Engenharia e Tecnologia em Lima, no Peru, e pela organização da última edição da Bienal de Arquitetura de Veneza, há dois anos, batizada “Freespace”.
O edifício educacional na América Latina emergiu como uma grande surpresa a ocupar capas de revistas de arquitetura em todo o mundo. Não era à toa. A gigantesca edificação é pitoresca -uma mescla de fundo de arquibancada de estádio velho de futebol com, do outro lado, uma profusão de volumes escalonados com diferentes dimensões e formatos.
Ao mesmo tempo vertical e comprido, o projeto tem um inesperado frescor. As arquitetas irlandesas apresentavam algo de inédito no antigo -e, para muitos, démodé- glossário do brutalismo arquitetônico.
Circular por dentro do centro universitário peruano equivale a atravessar um labirinto de escadas, passarelas, terraços, balcões, guarda-corpos, pilares, vigas -uma sobreposição de diferentes formas que se unificam no predominante concreto aparente.
As estruturas parecem ter dimensões excessivas. Os espaços de conexão entre laboratórios e salas de aula não são pragmáticos. As arquitetas exageraram de propósito nos tamanhos das circulações para dar ênfase aos espaços de interação e convivência.
Esse aspecto do projeto do Grafton Architects acabou reaparecendo de modo mais explícito no conceito que orientou a sua Bienal de Veneza. Era a primeira edição pós-eleição de Donald Trump e, numa contraposição aos ventos conservadores pelo mundo, a dupla irlandesa adotou um discurso alinhado de forma explícita a Barack Obama, o inquilino de saída da Casa Branca.
Estimulou os participantes da mostra a demonstrarem valores do tipo: “O papel da arquitetura é dar abrigo aos nossos corpos e elevar nossos espíritos”. Em tom de campanha eleitoral aparecia também: “Nós acreditamos que todos têm o direito de se beneficiar da arquitetura”.
Exemplificam a ideia de “espaço democrático, não programado e livre para usos ainda não concebidos” com o vão livre do Masp de Lina Bo Bardi. E tal como num manifesto, repetiam o início de vários parágrafos com o título daquela Bienal, “Freespace”, ou espaço livre, para defenderem as “qualidades essenciais da arquitetura que incluem a modulação, riqueza e materialidade das superfícies; a orquestração e sequenciamento do movimento”.
O visitante podia interpretar tais falas como platitudes ou bom-mocismo exacerbado, porém são coerentes com os projetos de Farrell e McNamara. O mais recente, aberto no começo do ano, é a Town House da Universidade de Kingston, em Londres, que mistura atividades de biblioteca e praça pública sem divisórias no interior do edifício.
Em Milão, haviam projetado a Universidade Luigi Bocconi, inaugurada em 2008. O prédio tem o tamanho de um grande quarteirão e parece uma rocha imensa. A maior surpresa está na relação entre o foyer do auditório e a calçada da rua –remete a uma gruta ou, já que é um vínculo puramente visual, a melhor metáfora talvez seja de um presépio.
Pelos exemplos dados fica patente que o Grafton acabou por se especializar em edifícios universitários. Além de um designo funcional, há um caráter pedagógico nos ambientes projetados. O escritório também tem, prontos ou em obras, projetos para faculdades em Dublin, Limerick, também na Irlanda, Toulouse e a Escola de Economia de Londres, que tende a ser a próxima obra-prima.
Outra evidência do didatismo da dupla é a contínua atuação como professoras. Passaram pelas universidades Harvard e Yale, nos Estados Unidos, Lausanne e Mendrisio, na Suíça, após décadas lecionando na University College da capital irlandesa, a mesma faculdade onde se conheceram e se formaram.
Fundaram o escritório em 1978 com um modelo de trabalho que mais parece uma cooperativa. Por isso, não quiseram batizar a empresa com seus sobrenomes Farrell e McNamara. Preferiram dar o nome da rua Grafton onde começaram a projetar juntas.
O júri do Pritkzer composto por figuras como o curador do MoMA, Barry Bergdoll, e o embaixador brasileiro, André Corrêa do Lago, ressaltou na ata “o profundo entendimento do espírito do lugar” de Yvonne Farrell e Shelley McNamara e, em seguida, destacou que “seus edifícios são bons vizinhos”. O melhor indício disso está no nome ao escritório -Grafton é a rua dublinense onde começaram a projetar juntas.

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