SOBRE A AUTORA: Viviane Vaz Castro é graduada em Serviço Social e Mestre em Serviço Social e Direitos Sociais.

Escrevi a primeira matéria veiculada no Brasil sobre o caso bárbaro de estupro da criança de 10 anos de São Mateus que comoveu o País. No sábado (8) eu fazia meu primeiro plantão como colaboradora da Rede TC e, dentre as ocorrências policiais referentes à sexta-feira (7) que recebi para noticiar, estava o caso da criança de 10 anos.

Os sentimentos de dor e revolta são os primeiros que chegam, e ao mesmo tempo. Dentre outras razões, o caso mexe com a gente pela desumanidade que envolve o abuso de uma criança da mesma família, mesmo eu sabendo que isso é muito comum. A violência física e sexual contra mulheres e meninas é expressão máxima de uma sociedade extremamente desigual entre homens e mulheres. A triste realidade desse não ser um caso isolado revela a crueldade e a gravidade do machismo no nosso país.

Apesar de ter estagiado por 1 ano e meio no Programa de Atendimento a Vítimas de Violência Sexual (PAVÍVIS), enquanto fazia o curso de Serviço Social na UFES, não fiquei “calejada” com esses casos, não me acostumo, não naturalizo nunca.

Aliás, quando li pela primeira vez a ocorrência enviada pela polícia à Rede TC, lembrei do estágio e logo pensei que o PAVÍVIS seria o melhor lugar para atendê-la. É um Programa antigo, de mais de 20 anos, que funciona como projeto de extensão, é vinculado ao Hospital Universitário e referência em aborto legal no Espírito Santo. Mas o procedimento foi negado e a criança precisou viajar mais 1600km para ter seu direito garantido em Recife.

Da experiência com o estágio veio o tema da minha monografia de conclusão de curso: pesquisei e estudei sobre aborto depois de vivenciar por 1 ano e meio um serviço de aborto legal. E queria trazer algumas reflexões.

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Dentro da enorme polêmica que envolve o aborto há um consenso entre quem defende a criminalização e a legalização de tal prática: ninguém gostaria que uma mulher precisasse abortar. Portanto, a questão central é como diminuir o número de abortamentos.

Para alguns, há que se proibir o aborto em qualquer situação, mesmo se ele for para retirar o fruto de uma violência sexual contra uma criança. Há também quem defenda a legalização do aborto para todos os casos, entendendo que a decisão sobre quando e como ser mãe é da mulher.

No Brasil, há três permissivos legais: quando a mãe corre risco de morte; quando a gravidez é resultante de estupro; e quando a gestação é de feto com anencefalia. Aqui surgem duas questões.

Primeira: se há casos em que o aborto é legal no país, há também serviços públicos que oferecem esse procedimento, certo?

Mais ou menos. Existem poucos serviços de aborto legal no país. Débora Diniz, uma das maiores pesquisadoras sobre o tema no Brasil, publicou artigo em 2016 afirmando que em 7 estados não existe sequer um serviço especializado; e em apenas seis estados existe serviço fora das capitais. No Espírito Santo, temos o Hucam, em Vitória, e o Hospital Maternidade São José, em Colatina. O resultado desse quadro é crianças sendo transferidas para outros municípios e mulheres recorrendo a métodos inseguros para realizar o aborto em casa.

Segunda questão: tendo acesso ao aborto legal ou não, as mulheres que querem ou precisam abortar não o deixam de fazer.

A grande verdade é que o aborto é uma realidade histórica, é uma prática comum, sempre existiu e sempre vai existir. Temos relato da prática do aborto desde 1700 a.C. no Código de Hamurabi (conjunto de leis da Mesopotâmia).

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As primeiras formas de criminalização do aborto no Brasil foram com o Código Criminal do Império do Brasil, de 1830, e o Código de 1890. O de 1830 não tinha pena para auto aborto; o de 1890 havia pena para auto aborto, mas com redução da terça parte da pena se fosse para ocultar desonra própria. Ou seja, se fosse para esconder uma “traição” da mulher e não ferir a honra do homem, ela teria a pena reduzida. Mais uma expressão do machismo.

Mas o fato é que todas as tentativas ao longo da humanidade de cessar ou diminuir os abortos pela proibição fracassaram.

O resultado da criminalização do aborto, assim, não é a redução e muito menos a eliminação dessa prática. É, na verdade, a desigualdade com que ela é vivida pelas mulheres. Nesse sentido, as mulheres pobres e negras acabam sendo as mais penalizadas.

A criminalização provoca uma realidade séria de saúde pública, com alto índice de mortalidade materna e internações.

Segundo a OMS, todo ano 5 milhões de mulheres dão entrada em hospitais por aborto inseguro; são 47 mil mortes por ano.

Os relatórios sobre mortalidade materna e aborto inseguro da OMS dizem que as mortes sobre aborto inseguro são quase todas evitáveis, seja pela democratização de métodos contraceptivos, pela educação sexual, planejamento familiar ou mesmo pela legalização.

As mulheres dão entrada nos hospitais por diversas complicações, seja por aborto incompleto (que geralmente está ligado ao método utilizado), por hemorragia, infecção, perfuração uterina e danos à vagina (mais comuns entre jovens, negras, pobres e residentes de áreas rurais).

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Ora, de acordo com o DataSUS, de janeiro a junho de 2020, por exemplo, o SUS já realizou mais de 80 mil procedimentos em mulheres com complicações resultantes de aborto incompleto. Em contrapartida, realizou pouco mais de mil abortos legais. Ou seja, a criminalização não elimina a prática do aborto, apenas deixa de amparar as mulheres, que recorrem a métodos inseguros e danosos à saúde.

E como então diminuir os casos? É preciso pensar o que leva uma mulher a abortar e tratar a questão em sua raiz. Quero dizer, o aborto é a ponta do iceberg, é o que aparece de um problema que é muito mais profundo.

É preciso política pública para diminuir os casos de violência sexual. É preciso ampliar toda a rede de atendimento às mulheres vítimas de violência. Mais do que isso, é preciso garantir trabalho digno, renda, moradia, escola e condições de mulheres criarem seus filhos.

Muitas abortam porque não têm condições de criar: os homens não assumem, os pais expulsam de casa, a sociedade julga, o Estado não ampara e toda a responsabilidade fica com elas. É o que acontece com boa parte das famílias brasileiras chefiadas por mulheres que se desdobram para sustentar quem delas depende para comer e sobreviver.

Por fim, e mais importante, é preciso acabar com o machismo, com a superioridade dos homens, com o sentimento de posse, com a desigualdade salarial e todas as formas de desigualdade entre homens e mulheres. Só assim a violência e o aborto irão diminuir.

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