DANIELE MADUREIRA E LEONARDO VIECELI
SÃO PAULO, SP, E RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – Entre o 1,3 milhão de bares e restaurantes no Brasil, existe um seleto time de 200 mil pontos de venda considerados “formadores de opinião”. São estabelecimentos já reconhecidos por décadas, com clientela consolidada, ou que trazem conceitos novos ao mercado, atraindo rapidamente um público qualificado, segundo definição da Abrasel (Associação Brasileira de Bares e Restaurantes).

Nos últimos 12 anos, desde a chegada da cervejaria Heineken ao Brasil, estes bares se transformaram num campo de batalha entre a holandesa e sua arquirrival belgo-brasileira AB Inbev, dona da brasileira Ambev e de cerca de 500 marcas no mundo -entre elas, as nacionais Brahma, Skol, Antarctica, Original, Bohemia e Caracu, e as estrangeiras Budweiser, Stella Artois, Corona, Modelo, Quilmes e Beck’s.

Foto: Rubens Cavallari/Folhapress

A preocupação em garantir espaço em locais de venda selecionados se tornou ainda maior em 2022, com a Copa do Mundo que começou neste domingo (20). A temporada de jogos deve contribuir para elevar a receita dos bares em cerca de 30%, segundo expectativa da Abrasel -levando em conta o fim das restrições impostas pela Covid-19, o calor e a primeira parcela do 13º salário.

Dona de quase dois terços (60%) do volume de cerveja vendido no Brasil, a Ambev se apressou em fechar nos últimos anos contratos de exclusividade com os bares “formadores de opinião”, a fim de limitar a entrada da rival holandesa no segmento de bares -canal que responde por 56% das vendas de cerveja no país e também o que oferece a maior margem de lucro.

Por meio destes contratos, os bares badalados poderiam vender apenas as marcas da Ambev; em troca, recebiam benefícios que iam desde o treinamento dos garçons, passando pelo material de merchandising (copos, porta-copos, guardanapos, cartazes, envelopamento de geladeiras) até dinheiro para auxiliar na reforma do estabelecimento ou na abertura de novos pontos.

“Mas acontece que isso saiu do controle”, disse à Folha Mauricio Giamellaro, presidente da Heineken no Brasil. Passou a ser difícil entrar neste segmento, a cada 10 bares que a gente visitava, 6 tinham contrato de exclusividade com a líder de mercado”, afirma o executivo, que decidiu, no início deste ano, acionar o Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) contra os contratos de exclusividade.

No final de outubro, o Cade entendeu que a Ambev estava abusando da sua posição dominante e proibiu a cervejaria de assinar novos contratos de exclusividade e de renovar os contratos vigentes em regiões de São Paulo (SP), Rio de Janeiro (RJ) e Brasília (DF) até o final da investigação, que não tem uma data definida.

As restrições do Cade para contratos de exclusividade, porém, valem para todas as cervejarias, inclusive para a Heineken. “Estamos felizes com a decisão do Cade”, diz Giamellaro. “Só fechamos contratos de exclusividade porque foi a regra imposta pela líder de mercado”, afirma.

De acordo com presidente da Heineken, um instituto de pesquisas contratado pela cervejaria apontou que, entre os estabelecimentos “formadores de opinião”, 40% no Rio e 30% em São Paulo tinham contratos de exclusividade com a Ambev. Já com a Heineken este percentual era de 1%.

“Considerando o setor de bares como um todo, nossa participação é de 10% -mas nossa marca responde por 30% das vendas nos supermercados e por 45% das vendas nos canais digitais”, diz o executivo.

De acordo com dados da consultoria Nielsen, a Heineken e suas outras marcas (Eisenbah, Amstel, Devassa, Sol, Schin, entre outras) têm cerca de 22% do mercado de cervejas no Brasil, em volume, enquanto a Petrópolis (dona de marcas como Itaipava, Petra e Crystal) ocupa o terceiro lugar, com 13%.

Em alguns bares, até 50% do faturamento depende da parceria do bar com a líder de mercado, diz Giamellaro. “Só ela tinha esse poderio econômico para barrar a entrada de novos concorrentes. E se é difícil para nós, imagina para uma cervejaria artesanal”, afirma o executivo.

“Mas a verdade é que o mercado de bares não precisa de porteiro, tem que se desenvolver, que se abrir à competição. Todos os mercados com porteiro se desenvolvem de maneira mais lenta e o consumidor não tem acesso à inovação.”

A Abrasel não vê tanta dependência dos bares em torno de contratos de exclusividade. “Em geral, os contratos são de cinco anos, sendo que no primeiro ano o bar não paga pela bebida, que só é cobrada a partir do segundo ano”, diz Paulo Solmucci Jr., presidente da associação.

Segundo ele, a entidade ficou satisfeita com a decisão do Cade. “Não houve prejuízo para o setor. É uma determinação que limita o avanço da Ambev no curto prazo, e favorece de certa forma a Heineken”, diz Solmucci. “A nossa expectativa é que outras cervejarias possam avançar no apoio aos bares.”

De acordo com o presidente da Abrasel, apenas 2% do volume de vendas da Ambev estão relacionados aos contratos de exclusividade. “É muito pouco, são contratos que valem pela visibilidade da marca em casas de renome.”

Questionada pela Folha a respeito do impacto da decisão do Cade, a Ambev respondeu, em nota, que continuará seguindo as medidas e orientações adotadas pelo autarquia. “Temos o compromisso de manter um ambiente concorrencial justo, respeitando a legislação concorrencial”, informou.

Também procurada, a Petrópolis não quis comentar.
Exclusividade envolve até contratação de banda de jazz Na capital paulista, os contratos de exclusividade da Ambev envolvem grandes redes como a Cia Tradicional do Comércio -dona de Pirajá, Original, Bráz e Lanchonete da Cidade -e Fábrica de Bares, que tem entre as casas parceiras o Bar Brahma, Blue Note, Jacaré, Orfeu, Riviera e Bar Léo. Procuradas pela Folha de S.Paulo, nenhuma das redes quis dar entrevista.

Já o Kia Ora, localizado na Vila Olímpia, zona sul de São Paulo, tem contrato de exclusividade de visibilidade com a Heineken, que deve durar até 2024. A marca está presente desde o porta-copos até o balcão estilizado do estabelecimento, passando pelo uniforme da equipe. Mas, pelo acordo, o Kia Ora pode vender outras marcas, como a artesanal Wallaby e a irlandesa Guinness.

“Nosso bar já foi assediado anos pela Ambev, mas é uma empresa que blinda totalmente a operação do bar, não te dá espaço para negociar outras marcas”, diz Ranieri. “O perfil do meu público se identifica mais com a marca Heineken, com quem também tivemos maior liberdade de negociação.”

O acordo da Heineken com o Kia Ora envolve uma entrega “exclusiva”, dentro do horário pré-agendado com o bar (em geral, os bares entram dentro da rota do caminhão) e a contratação de uma banda de jazz, que toca às terças.

“Não vejo problema em abrir o portfólio para outras marcas”, diz Ranieri. “O que convence um cliente a optar pelo bar é o ambiente, o atendimento, o bom serviço. Se tiver a marca que ele busca, melhor ainda.”

De acordo com a pesquisa encomendada pela Heineken nas capitais São Paulo, Rio, Brasília e Belo Horizonte, mais de 60% dos consumidores de bares não gostam de ir ao ponto de venda e não encontrarem a sua marca preferida.

O engenheiro Manoel Messias Gonçalves do Nascimento, 58, já sabe onde encontrar suas cervejas preferidas na capital paulista, onde mora. “Mas quando viajo para outros estados, e vou a um bar onde nunca estive antes, é desagradável encontrar este tipo de restrição, locais que só vendem determinada marca de cerveja”, diz ele. “Essa exclusividade não deveria existir.”

Beber no bar é sempre mais caro do que em casa. Mas, nos últimos 12 meses até outubro, a cerveja para consumo fora do domicílio acumulou inflação de 6,63%, conforme o IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo). Já o preço da cerveja consumida em casa avançou 9,97%, um pouco acima do IPCA em termos gerais (6,47%).

Entre as 16 capitais e regiões metropolitanas pesquisadas pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), Porto Alegre foi a capital em que a cerveja para consumo fora de casa acumulou a maior inflação em 12 meses: 16,20%.

Conforme já apontou a Folha, a indústria de cerveja tem praticado com bares um reajuste menor do que com supermercados, uma vez que os estabelecimentos para consumo imediato oferecem uma margem de lucro maior às cervejarias.

O Brasil é o terceiro maior consumidor mundial de cerveja, depois da China e dos Estados Unidos.

Lista ** “Os supermercados conquistaram um espaço relevante nas vendas de cervejas a partir da pandemia”, diz Rodrigo de Mattos, analista sênior da consultoria Euromonitor.

“Embora os bares continuem liderando as vendas enquanto canal, os supermercados tendem a manter a sua relevância, uma vez que são a principal alternativa do consumidor para lidar com a inflação”, afirma.

Para 2023, segundo Mattos, a pressão inflacionária sobre o produto pode vir das embalagens. “Há falta de vidro no mercado, um material que precisa de investimento de médio prazo para fazer crescer a sua produção, enquanto a lata enfrenta a alta do preço do alumínio”, diz. “Ainda assim, a previsão é de maior estabilidade no preço das bebidas.”

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