MAYARA PAIXÃO

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O prazo estipulado pelo governo Lula 3 para tirar o acordo entre Mercosul e União Europeia (UE) do papel –até metade do ano– pode parecer ambicioso para uma negociação que se arrasta há mais 20 anos. O embaixador do bloco no Brasil afirma, porém, que a própria UE vê uma conclusão como urgente.

Um dos motivos, indica Ignacio Ybáñez em entrevista à Folha, é o cenário criado pela Guerra da Ucrânia, que catalisou a necessidade europeia de buscar novos parceiros confiáveis –trocando em miúdos, fugir da dependência de países como a Rússia.

O espanhol diz que a área energética –em especial o hidrogênio verde– é uma das que provoca maior interesse do bloco no Brasil, e afirma crer que o país e seus produtos estão prontos para atender às demandas europeias por cadeias de suprimento sustentáveis.

Ainda sobre o conflito no Leste Europeu, discorda que países do Sul Global tendam à neutralidade. Mas reconhece as cobranças de países da região. “O chamado a ser coerente no âmbito internacional é sempre válido. O que ele não pode nunca é ser usado como desculpa.”

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Folha – O governo Lula 3 colocou o acordo entre a UE e o Mercosul como prioridade na agenda externa. Chegou a propor um prazo até a metade deste ano. Mas países como a Argentina já manifestaram incômodo com alguns meandros. Pode-se falar em algum prazo?

Ignacio Ybáñez – O acordo sempre foi necessário, e, na situação internacional atual, com a agressão da Rússia à Ucrânia e a convicção de que temos de buscar parceiros confiáveis, este é o momento certo para fazer avançá-lo.

Compartilhamos com o Mercosul valores de democracia, direitos humanos e economia de mercado. O ponto principal que não conseguimos avançar em 2019 era a agenda ambiental. Acordamos então um instrumento adicional para assegurar que todas as partes cumpririam o Acordo de Paris.

A chegada de Lula que, ainda como presidente eleito, foi à COP27, sinalizou que as preocupações que tínhamos podiam ser deixadas de lado. Isso nos anima. Já apresentamos ao Mercosul os elementos centrais desse instrumento adicional, que está sendo discutido. Temos a ambição de que, em julho, quando ocorre a cúpula UE-Celac, possamos fazer o anúncio de que o acordo está finalizado.

Folha – Acha que o Brasil está preparado para lidar com os requisitos ambientais de países do bloco para permitir que exportações entrem em suas fronteiras?

Ignacio Ybáñez – A legislação que a UE vem adotando é fruto da convicção da opinião pública e das instituições de que não podemos criticar o desmatamento, seja no Brasil ou em outros países, e ao mesmo tempo contribuir indiretamente com isso.

Se um produto que foi resultado do desmatamento chega livremente ao mercado europeu, essa atividade está sendo favorecida. A legislação não tem que ser vista como protecionista. Visa contribuir com a responsabilidade comum que temos de reduzir o desmatamento.

O Brasil tem instrumentos suficientes para se preparar para essa situação. Há programas, como os de selo verde, para rastreabilidade do produto. Isso faz a distinção da grande maioria dos produtores, que cumprem a legislação ambiental, daquela minoria que não cumpre a lei.

Folha – A crise dos yanomamis mostrou que há áreas onde nem sequer o governo tem controle. Como avalia a resposta do governo Lula?

Ignacio Ybáñez – Sempre manifestamos nossas preocupações respeitando a soberania brasileira. Mas o exercício pleno da soberania se cumpre quando o Estado pode fazer cumprir a legislação em todo o seu território.

O que ocorre no território yanomami é uma boa demonstração disso. Estamos cientes de que a situação não muda de um dia para o outro, de que resultados radicais não são imediatos, mas o importante é que a mensagem do presidente Lula e seu governo é de que a ilegalidade não pode ser respeitada.

Folha – A ausência de gás russo fez alguns países como a Alemanha darem passos atrás no plano de criar uma economia neutra. A Guerra da Ucrânia atrasou as metas europeias?

Ignacio Ybáñez – Os objetivos se mantêm. Reduzimos as datas para cumprir metas de economia zero. Mas deixamos certa flexibilidade aos Estados para se adaptarem a essa situação.

A situação de guerra criada pela Rússia nos ajuda a dar passos mais rápidos na boa direção. Não podemos utilizar essa situação como desculpa para atrasar nosso objetivo. Nosso desejo é fazer o contrário.

Estamos buscando parceiros confiáveis em outros lugares do mundo, e obviamente no campo energético o Brasil é um país muito interessante, tem recursos naturais, grandes possibilidades no campo do hidrogênio verde.

Folha – Países do Sul Global tiveram posicionamento bem diferente dos países do Norte e da Otan. Preferiram adotar certa neutralidade e não cortar laços com a Rússia. Como avalia isso?

Ignacio Ybáñez – Uma coisa são as declarações, outra é quando têm de votar. A última resolução da Assembleia-Geral da ONU apresenta números esmagadores [de países que condenaram a guerra].

Não diria que o Sul Global é neutro. Está preocupado com seu próprio desenvolvimento e insiste na necessidade de procurar soluções, porque a guerra, além de causar muita dor nos países afetados, tem implicações no mundo todo. Permitir que um país membro do Conselho de Segurança, como a Rússia, não respeite o direito internacional resulta em um mundo de selva, não de civilização. Diria que a resposta do Sul Global e da comunidade internacional foi muito forte.

Temos preocupações alinhadas às dos países do Sul, como a necessidade de buscar soluções, e estamos trabalhando nessa direção, por exemplo ao deixar fertilizantes e produtos alimentares fora das sanções.

Folha – Além da razão econômica, análises apontam que a apatia do Sul envia uma mensagem ao Norte, já que também resulta da maneira como Europa e EUA lidaram com crises nesses países. O que pensa?

Ignacio Ybáñez – A lição que todos têm de ter é a da importância de respeitar o direito internacional, independentemente de onde ocorram as crises.

É uma reclamação legítima. O chamado a ser coerente no âmbito internacional é sempre válido, e o respeitamos plenamente. O que ele não pode ser nunca é usado como desculpa.

Folha – A China é a principal parceira comercial da UE. Mas, nos últimos meses, líderes do bloco têm dado sinais de que querem diminuir essa dependência. Como está essa relação?

Ignacio Ybáñez – Continuamos tendo uma relação muito próxima. Logicamente fazemos questão de discutir sobre o que não concordamos, como violações de direitos humanos. Mas há áreas em que a cooperação funciona bem, sobretudo no âmbito multilateral.

No caso da agressão russa, relembramos à China que o país não pode querer ser uma potência se não baseia suas ações no pleno respeito do direito internacional. A China poderia fazer mais nessa direção. Mas não somos um bloco que gosta de exclusões. Não interrompemos os diálogos de alto nível. Queremos uma relação de proximidade.

Folha – O presidente Lula em breve viaja a Pequim. E a China tem tentado ampliar laços com a América Latina. Como o sr. vê esse movimento?

Ignacio Ybáñez – Com normalidade. Com a expansão da China, é normal que o país esteja mais presente em todo o mundo. Antes éramos o primeiro parceiro comercial do Brasil, agora já somos o segundo, com a China à frente. Respeitamos o crescimento deles. Obviamente, temos uma forma diferente de fazer as coisas. Com o Brasil, temos alguns elementos distintos, como uma história comum e valores compartilhados.

O Brasil em dezembro deste ano vai assumir a presidência do G20, o que vai dar a ele uma responsabilidade extra. Também segue membro não permanente do Conselho de Segurança. Os contatos do Brasil com seus parceiros, incluindo a China, são perfeitamente compreensíveis.

Folha – Como vê a ampliação do número de assentos permanentes no Conselho de Segurança e o possível ingresso do Brasil nessa categoria?

Ignacio Ybáñez – É tempo de discutir o funcionamento do Conselho de Segurança. O abuso do direito de veto está limitando muito as funções do colegiado.

A UE segue desejando a possibilidade de participar do Conselho, mas, enquanto isso não acontece, reforçamos o trabalho conjunto. A preparação da recente resolução da Assembleia-Geral foi exemplo disso. A delegação da UE teve um contato muito próximo com o Brasil para acomodar as posições de ambos, em especial no capítulo que falava sobre o diálogo, e o resultado foi muito bom.

Raio-X

Ignacio Ybáñez, 60 Embaixador da União Europeia no Brasil, foi secretário de Estado do Ministério dos Negócios Estrangeiros e Cooperação da Espanha, onde também ocupou o cargo de diretor-geral de Política Externa e Assuntos Globais Multilaterais e diretor-geral para África, Mediterrâneo e Oriente Médio. Também foi embaixador da Espanha na Rússia.

Foto: Wirestock-Freepik
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