FERNANDO CANZIAN
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Ao defender o isolamento só daqueles do chamado grupo de risco, como idosos e portadores de comorbidades durante a epidemia da Covid-19, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) atropelou de maneira desastrada algo que alguns membros da comunidade médica no Brasil já vêm discutindo nos bastidores.

Foto: Reprodução

Bolsonaro disse que os mais jovens, inclusive crianças, deveriam voltar a circular, a trabalhar e ir à escola, e que o isolamento deveria restringir-se às pessoas vulneráveis.
Alguns profissionais na linha de frente do enfrentamento da epidemia argumentam que isso seria catastrófico nesse momento, quando o país ainda se prepara para o aumento do número de casos.
Mas também uma possibilidade a ser discutida mais à frente, desde que algumas medidas fossem adotadas antes e premissas, consideradas.
A Associação de Medicina Intensiva Brasileira (Amib), por exemplo, condenou a fala do presidente nesta quarta (25) e afirmou que, com os casos em franca ascensão e o sistema ainda se preparando, o isolamento é a “recomendação inequívoca” no momento.
“É inquestionável que se faz necessário medida para evitar o colapso total da economia e essas medidas precisam ocorrer de forma responsável”, disse a Amib em nota. A entidade acrescentou que apoiará ações do governo no sentido da liberação “no momento correto”.

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Em três dos países que já têm dados suficientes para estabelecer de forma mais segura o perfil etário dos mortos pelo vírus (China, Espanha e Itália), os óbitos de pessoas abaixo dos 40 anos não supera 0,3% dos infectados. A taxa só sobe para ao redor de 1% para aqueles entre 50 e 59 anos, para depois aumentar rapidamente entre os mais velhos.
Os três países têm percentuais de pessoas acima de 65 anos maiores do que o Brasil (12%, 19% e 23%, respectivamente, ante 10%), o que deve levar, proporcionalmente à população, a mais mortos entre eles.
Para se ter segurança de que a divisão etária no Brasil seguirá o mesmo padrão desses países, porém, seria necessário esperar por uma base maior de óbitos que sustente essa premissa.
Outro ponto fundamental a ser atacado antes de se considerar qualquer liberação parcial dos mais jovens, segundo especialistas, seria massificar o número de testes para a Covid-19, algo que a Coreia do Sul fez com sucesso –a China também, embora em menor escala–, o que permitiu modular os impactos econômicos de maneira mais eficiente.
Ao identificar com mais exatidão onde os focos da doença se concentravam, foi possível deixar que outras regiões e comunidades inteiras pudessem circular e trabalhar mais livremente.
No Brasil, só a partir desta semana o Ministério da Saúde passou a priorizar a importação e o aumento, em massa, do número de testes –algo que vem sendo considerado um dos erros imperdoáveis da pasta até aqui no planejamento contra a epidemia.
Antes que os testes ocorram para valer, é impossível saber até se motoristas de ambulância, policiais e caixas de supermercado estão infectando outras pessoas.
Mas o ponto prioritário a considerar é o front de atendimento aos doentes. Acabar agora com o isolamento, como quer o presidente, provocaria estragos irreparáveis.
Os comandos dos hospitais ainda consideram essencial “achatar a curva” de infectados pela via do confinamento para que tenham tempo suficiente para preparar o sistema para quando a epidemia ganhar toda a força, repetindo os outros países.
Depois de mapear o número de leitos de UTIs em todo o Brasil, seu nível de ocupação e o que pode ser ampliado com o cancelamento em massa de cirurgias eletivas, a prioridade dos hospitais passou a ser identificar e organizar os ventiladores para respiração assistida, fundamentais para o tratamento dos pacientes graves –mesmo que fora de UTIs.
Nos epicentros da epidemia no mundo, têm sido demandados, em média, 2,4 leitos de UTI para cada 10 mil habitantes. O Brasil tem pouco mais de 2,1 por 10 mil, mas com distribuição regional muito desigual.
Também é muito desproporcional a divisão entre o que há no SUS (1 leito de UTI para cada 10 mil habitantes) e no sistema privado (4,8 por 10 mil segurados).
Assim, a adequação dos cerca de 57 mil leitos de UTIs existentes ainda vai levar algum tempo. Sobretudo porque 95% deles no setor público e 80% no privado já viviam ocupados antes da epidemia –algo que está sendo redimensionado agora com o cancelamento de cirurgias não prioritárias.
No caso dos ventiladores, o principal equipamento para tratar casos graves, o país tem quase 3 para cada 10 mil habitantes, em um total de 62 mil unidades.
A maior parte deles fica normalmente sem uso em leitos de UTI para pacientes internados não por causa do coronavírus. Por isso, eles estão sendo mapeados e preparados para ser transferidos para outras áreas em caso de necessidade.
Esses esforços logísticos vêm sendo executados neste exato momento. E saturar abruptamente o sistema como resultado da liberação geral de pessoas mais jovens às ruas comprometeria uma reorganização que leva tempo, com o esforço enorme de equipes hospitalares já trabalhando no limite.
Outro ponto fundamental, caso decisão nesse sentido seja tomada mais à frente, é como levar a sociedade a separar de forma radical a convivência das pessoas mais jovens dos que fazem parte dos grupos de risco, como os mais velhos e indivíduos com doenças pré existentes.
Embora qualquer discussão mais propositiva ainda deva esperar a adequação imperiosa dos pontos acima, sobretudo dos testes e do sistema de atendimento –além de ter de assumir o risco aos mais jovens e seus familiares–, médicos argumentam que uma crise econômica profunda também terá efeitos graves sobre a saúde, especialmente pela via da nutrição e da insalubridade de muitos ambientes domésticos durante o confinamento.
A grande pergunta agora é quanto tempo um país com quase 10% da população favelada, 38,3 milhões de informais e com rendimentos médios de R$ 820 na metade mais pobre, antes da crise, aguentará sem começar a sair à rua de forma desorganizada.

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