REINALDO JOSE LOPES
SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS) – Quase todo mundo ouviu falar dos vikings, e quase todos os que ouviram falar deles são capazes de traçar um retrato rápido dos sujeitos: altos, louros, barbudos, sanguinários, às vezes heroicos. Mas o mais abrangente retrato do fenômeno viking feito até hoje mostra que eles eram muito mais complicados do que a imagem deixa entrever.

Em “Children of Ash and Elm” (Filhos do freixo e do olmo, livro ainda sem versão brasileira), o arqueólogo britânico Neil Price, da Universidade de Uppsala (Suécia), faz jus a essa complexidade amarrando os fios soltos das mais diversas disciplinas, da genômica à linguística, da geologia aos estudos da religião (uma de suas especialidades).

A ênfase em produzir essa visão global e “de dentro” de uma sociedade antiga começa, aliás, com o título aparentemente cifrado. É que os nomes de árvores do hemisfério Norte vêm das designações do “Adão” e da “Eva” da mitologia nórdica, criados pelo deus Odin e seus irmãos a partir de pedaços de madeira: Askr (freixo, o primeiro homem) e Embla (olmo ou talvez videira, a primeira mulher).

O retrato ressalta, em primeiro lugar, como a chamada Era Viking (convencionalmente definida como os séculos entre 750 d.C. e 1050 d.C.) foi cosmopolita. E isso não apenas porque os navios escandinavos carregaram saqueadores por uma área vasta, que vai da Irlanda e da Espanha, no oeste, à Ucrânia (e possivelmente ao Egito) no leste.

Roubos, matanças, estupros e tráfico de escravos deveriam estar na cabeça de todos os que são tentados a romantizar os vikings, adverte Price, mas a carnificina frequentemente era acompanhada, ou trocada, por habilidosas estratégias de comércio e diplomacia.

Parte dessa complexidade tem a ver com o fato de que ninguém era viking de nascença. A etimologia da palavra é controversa, mas o certo é que ela não era designação étnica. Está mais para um termo técnico usado para classificar quem participava de incursões marítimas, algo próximo de “pirata” em português.

Além disso, o maior estudo de DNA já feito sobre os vikings, do qual Price participou, mostrou que eles absorveram influências genéticas de variadas regiões da Europa e até da Sibéria.

Sujeitos enterrados com as armas e enfeites típicas dos vikings às vezes tinham “sangue puro” de outras populações, como os celtas. E há pelo menos um caso de mulher sepultada com a parafernália guerreira. “A colaboração entre genômica e arqueologia está ficando mais afinada. O importante é lembrar sempre que a genética não necessariamente corresponde à identidade cultural”, disse Price à Folha.

Estamos acostumados ao dualismo corpo/alma, mas os antigos escandinavos tinham quatro “camadas” de personalidade. A mais externa, “hamr”, equivale ao corpo, grosso modo, mas podia ser alterada em certas circunstâncias (o que explica a crença em guerreiros capazes de assumir forma de lobo ou urso). Depois vinha “hugr”, algo como a “mente” essencial.

A coisa fica mais bem esquisita, porém, com a crença na “hamingja”, espécie de espírito da sorte, e na “fylgja”, entidade feminina –mesmo quando habitava o corpo de um homem– que incorpora algo das funções de anjo da guarda e espírito dos ancestrais.

Igualmente interessante é o estudo dos fatores que produziram o sucesso tremendo dos escandinavos como piratas, conquistadores, colonos e comerciantes. Não há explicação simples, diz Price. A era das invasões vikings começa num período de centralização política na Escandinávia, no qual pequenos reinos disputavam o comando do território e de rotas marítimas.

No resto da Europa, havia uma fase de crescimento econômico e comercial, com o surgimento de entrepostos nas atuais Holanda, Alemanha, Inglaterra e França; e, por fim, Estados relativamente pequenos e fracos ao sul.

Forças militares nas terras vikings, tendo menos chance de guerrear em casa e com incentivos para a pilhagem ao sul partiram em busca do butim. Abocanharam áreas da Inglaterra, da Escócia, da Irlanda e da França, além de fundar reinos que dariam origem à Rússia e à Ucrânia.

Esse quadro é combinado, no livro, com detalhes do cotidiano: inscrições feitas com runas com comentários sexuais maldosos; ferreiros que usavam o mesmo molde para fabricar cruzes e amuletos do martelo do deus Thor; espadas de madeira para crianças (e cadeirões com barra de proteção para bebês, como os de hoje). É difícil chegar mais perto de uma máquina do tempo do que isso.
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CHILDREN OF ASH AND ELM: A HISTORY OF THE VIKINGS
Autor: Neil Price
Editora: Basic Books
Quanto: R$ 53,14 (624 págs, em ebook)
Avaliação: Ótimo

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