Com promessas de dinheiro fácil, os jogos de aposta –regulamentados e que permitem acompanhar os resultados, além de calcular lucros– e os jogos de azar –ilegais, que dependem de algoritmos desconhecidos, como o do ´tigrinho´–, em especial os na modalidade online, têm atraído milhões de brasileiros que depositam ‘as fichas’ diariamente. O impacto dessa prática pode ser percebido na saúde mental, no convívio familiar e também na vida financeira dos jogadores.
Há três anos longe de plataformas de apostas esportivas online, após ter perdido mais de 100 mil reais, um homem de 30 anos, que preferiu não se identificar, conversou com a Reportagem para relatar a longa experiência que teve com esse tipo de jogo.
“Desde os 14 anos, eu brincava em uma plataforma online com pequenas apostas, colocando dois, três ou quatro reais. É aquela situação em que você aposta dois reais e ganha cinco. Aposta os cinco e ganha dez, daqui a pouco está perdendo duzentos mil reais. A minha história é mais ou menos assim” – recorda.
Nascido no Espírito Santo, o homem revela que se mudou para São Paulo com a esposa e lá passou a viver de apostas. “No começo, ganhei muito dinheiro, comprei os móveis e eletrodomésticos da casa, praticamente todos com dinheiro de apostas. Joguei pôquer por muito tempo. Há três anos, tive alguns surtos que duraram uns quatro meses. Cheguei a perder 15 mil reais em um dia e, quando fiz as contas de todo o prejuízo, estava devendo cem mil reais ao banco” – detalha.
CICLO VICIOSO
Ele explica que quando o apostador contumaz joga e começa a perder, funciona da seguinte forma: a pessoa aposta e perde mil reais, então aposta mais mil reais para recuperar o que perdeu. “O vício nesse sentido, não entendo muito bem, mas parece que tem uma dopamina, alguma coisa que você precisa jogar para o coração acelerar. Eu jogava todos os dias para ter essa sensação” – frisa.

Especialista alerta para principais riscos da prática
O psiquiatra Karisten Soares Martins afirma que os jogos de aposta e os de azar podem se tornar um transtorno que, de certa forma, se parece com uma dependência química de drogas lícitas ou ilícitas, pois, segundo ele, os jogos podem causar as mesmas situações.

O especialista explica que, ao passo que joga, o apostador tende a querer repetir a dose, podendo sentir, inclusive, uma fissura quando não tem um aparelho eletrônico à disposição ou local acessível para praticar. “[O indivíduo] pode passar mal por sentir essa necessidade. O jogo patológico, ou seja, quando a pessoa começa a desenvolver a doença, gera essas alterações. A pessoa fica enfeitiçada pelo jogo e isso pode gerar uma série de consequências como ansiedade, estresse, insônia, frustração e depressão, uma vez que os resultados não são mais tão satisfatórios como no começo, o que pode trazer muitas consequências para a qualidade da vida da pessoa e de toda a família” – sustenta.
SINAIS
De acordo com Karisten, alguns sinais podem ser percebidos por quem convive com quem já tem o hábito de jogar compulsivamente. Ele pontua que ficar atento ao comportamento pode facilitar a percepção do problema e ajudar o jogador a sair de uma eventual dificuldade.
“Quem joga costuma passar cada vez mais tempo no celular ou no computador, ou seja, nas telas. Tem que ficar atento ao uso excessivo. [Os apostadores] também vão mais em casas de jogos, como loterias [que são legalizadas], jogo do bicho e outros. Com a tecnologia, fica mais fácil viabilizar o vício. Também é comum começarem a se isolar e evitar eventos sociais. Quem joga, no geral, é meio desconfiado por ter a sensação de que as pessoas próximas sabem da realidade dele, principalmente quando já acumulam dívidas” – aponta o psiquiatra.
“O vício te afunda. A gente
só conta o que ganha” –
relata ex-apostador, que
diz ter chegado ao desespero
Conforme o homem que relatou à Reportagem que contraiu dívida de 100 mil reais em razão das apostas esportivas online, sair do processo de vício e dívidas é muito difícil.
“[É complexo] saber que você está em um grande problema, mas tem vergonha de assumir, tem vergonha de tudo. Até de quem está do seu lado, mesmo sendo só eu e minha esposa aqui em São Paulo, nem para ela eu tinha contado. Por conta do ego, a gente não consegue contar e o processo é pior, ninguém sabia, nem a minha esposa. O vício te afunda. A gente só conta o que ganha. Conta o que comprou com o dinheiro que ganhou, mas não contamos as derrotas” – enfatiza.
Ele afirma que tem conhecidos que jogam e, assim como ele fazia, só contam as vitórias. “Nesse meu período de fundo do poço, eu tentei tirar a vida por três vezes, tive uma depressão forte. Eu não conseguia fazer nada. Em uma situação de desespero, o meu irmão me ligou e viu tudo, e foi aí que ele me ajudou a sair da situação. Por conta própria, não teria saído. Não é fácil, não” – desabafa.
GRUPO DE APOSTADORES
O ex-apostador salienta que é comum, quando a pessoa joga, estar cercada por outras que também têm o hábito de apostar. E, segundo ele, mesmo que o jogador pare com as apostas, sempre aparecem plataformas novas com algum tipo de jogo cada vez mais atrativo, “criado para viciar”.
“As pessoas começam se alguém incentivar. Sou gestor em uma empresa e tive problemas. Devido aos jogos, perdi 15 funcionários na época do ‘jogo do tigrinho’. Um dos funcionários ganhou R$ 5.000,00 em um só dia e contou no café da tarde, e todo mundo começou a jogar. Depois, pediram demissão. Foi uma febre aqui em São Paulo. Sempre vai ter alguém te chamando para algum tipo de jogo e, quando começa, a sensação é gostosa, mas quando vicia, já era. Esse começo que leva ao final tão triste. Eu só consegui parar com tudo porque a minha esposa falou: – ‘ou para de vez ou não vamos poder continuar mais juntos’. A dica é não começar. Não compensa” – alerta.
A conscientização é um caminho para
evitar a dependência
Desde 2018 as apostas esportivas são legalizadas no Brasil, conforme a Lei 13.756, que determinou a necessidade de regulamentação da atividade, tendo sido efetivada em 2023, por meio da Lei 14.790. Nos últimos anos, o número de apostadores segue numa crescente no País.
Segundo o psiquiatra Karisten Soares Martins, ele também percebeu uma ampliação na procura por atendimentos de 20% em um comparativo dos atendimentos do ano de 2024 com os quatro primeiros meses de 2025. Ele acrescenta que os jogos de aposta estão na moda depois do advento dos jogos online e que é preciso ter a consciência de que jogar pode causar dependência.
“Quando a pessoa prova uma situação –seja jogo ou uma droga– isso produz nela um bem-estar e esse bem-estar é o aumento de uma substância no cérebro chamada dopamina. Essa substância gera prazer, que vai fazer com que o cérebro queira repetir o ato. Toda vez que o sistema de recompensa é ativado, aumenta a dopamina e é isso que os jogos fazem. Primeiro você ganha, é fácil, fica animado e depois perde tudo. Quem não tem problema com dependência vai perder, ficar com raiva e não vai jogar mais. Já quem tem tendência para dependência vai apostar mais e assim nasce um vício” – detalha.
Segundo Karisten, é primordial que as pessoas sejam conscientizadas de que os jogos de apostas são tão perigosos quanto o álcool, por exemplo. “Algumas pessoas bebem socialmente e outras abusam. Se a pessoa tem alguma tendência, sugiro que nem teste, não comece a jogar. A família precisa informar aos filhos sobre os possíveis problemas, ficar de olho nas crianças e nos adolescentes e também nos idosos, porque as ofertas [de jogos e facilidades de ganhos] estão em todos os lugares” – enfatiza.
Terapia e medicação são opções para tratamento
Karisten ressalta que o grau do transtorno adquirido com os jogos de apostas é que vai determinar o tipo de tratamento a ser seguido. Segundo o profissional, os variados níveis de transtorno podem ser tratados com terapia cognitiva comportamental com um psicólogo e até uso de medicação, no caso de acompanhamento de ansiedade ou depressão.
“A taxa de prevalência de jogo para adolescentes é muito mais alta que nos adultos. O nível da população está na faixa de 8% para adultos e 16% para adolescentes. No mundo, isso gira em torno de 450 milhões de pessoas com problemas. Acredito que nem todo mundo que é acometido busca ajuda psicológica” – pondera o especialista.
Procon-es afirma que apostas levam milhares de consumidores
ao superendividamento
Em nota, o Instituto Estadual de Proteção e Defesa do Consumidor do Espírito Santo (Procon-ES) salienta que, em articulação com o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, requer a regulamentação das plataformas de jogos de apostas no Brasil e está atento à atuação dessas empresas no ambiente digital. “Embora ainda não haja uma legislação específica consolidada, o sistema tem se mobilizado para coibir práticas ilegais. As ações de fiscalização incluirão a identificação e notificação de plataformas que operam sem autorização, especialmente aquelas que não utilizam o domínio ‘.bet.br’. Além disso, está prevista a solicitação de remoção desses sites e a aplicação das penalidades cabíveis” – frisa o órgão estadual.
Segundo o Procon-ES, serão, paralelamente, intensificadas as campanhas educativas e os canais de denúncia para alertar à população sobre os riscos envolvidos e reforçar a importância do consumo consciente e seguro.
A Orientação do Procon-ES para os consumidores é que tenham cautela ao participar de jogos de apostas, especialmente os realizados por plataformas online e reforça que é fundamental verificar se o site possui autorização para operar no Brasil, bem como ler atentamente os termos de uso e as regras do jogo, além de evitar o uso de dados pessoais ou bancários em ambientes não seguros.
“As apostas, que têm levado milhares de consumidores ao superendividamento e à dependência digital, geram impactos severos na saúde mental e na estabilidade financeira das famílias brasileiras. Por isso, o Procon-ES reforça a importância de agir com responsabilidade, consciência e atenção aos riscos envolvidos nesse tipo de atividade” – frisa.