DAVID LUCENA
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Aos gritos de “quebra!”, um grupo de homens invadiu, por volta das 22h30, o terreiro de Chico Foguinho. A cerimônia religiosa estava no auge e os praticantes, pegos de surpresa, foram agredidos pela multidão.
Alguns objetos sagrados, como utensílios, adornos, vestes e instrumentos, foram destruídos ali mesmo; outros foram jogados na rua e incinerados, formando uma grande fogueira.
A cena se repetiu outras dezenas de vezes na mesma noite. Aquele 1º de fevereiro de 1912, em Alagoas, entraria para a história como o maior atentado contra religiões de matriz africana no Brasil.
O Carnaval seria dali a algumas semanas. Simulando uma prévia carnavalesca, homens liderados pela Liga dos Republicanos Combatentes partiram da sede da entidade, na região central de Maceió, para invadir quase todos os terreiros da capital alagoana.
O atentado, que ficou conhecido como Quebra de 1912 ou Quebra de Xangô -o orixá mais cultuado em Alagoas à época-, é considerado o segundo episódio mais traumático da história negra do estado onde um dia existiu o maior quilombo do país.
O mais violento foi justamente a derrubada do Quilombo dos Palmares, em 1694. O quilombo ficava na Serra da Barriga, hoje em Alagoas -na época, a área pertencia a Pernambuco-, e teve como um dos principais líderes Zumbi, cuja morte é lembrada no dia 20 de novembro, instituído por lei como o Dia da Consciência Negra.
Naquela noite de 1912, os agressores começaram a destruição pelo terreiro de Chico Foguinho. “Os seguidores foram surpreendidos no auge da cerimônia religiosa, alguns deles ainda com o santo na cabeça”, segundo relatos de jornais locais consolidados pelo antropólogo Ulisses Neves Rafael, da Universidade Federal de Sergipe, que dedicou seu doutorado ao tema.
Os combatentes continuaram destruindo outros terreiros, como o de João Funfun e o de Pai Aurélio. Já era quase meia-noite quando eles chegaram ao terreiro de Tia Marcelina, um dos mais antigos.
Maceió era um dos locais com maior concentração de terreiros no início do século 20. Segundo Fernando Gomes de Andrade, professor da Universidade Federal de Alagoas e autor do livro “Legba – A Guerra Contra o Xangô em 1912”, havia mais de 70 casas de culto -a cidade tinha, em 1900, 36 mil habitantes, conforme o IBGE.
A comunidade religiosa afro-brasileira era, portanto, um grupo expressivo, mesmo em um local tão católico. Diante da crescente influência dos negros, começou a surgir um forte movimento de intolerância, que, juntamente com uma disputa política, culminou no Quebra.
Segundo Andrade, não há registro de mortes, mas o atentado causou profundos impactos na religiosidade afro no estado. Amedrontados após o Quebra, os fiéis começaram a fazer cultos sem as tradicionais batucadas, gerando, assim, uma manifestação religiosa que ficou conhecida como Xangô rezado baixo.
Presidida por Manoel Luiz da Paz, negro, sargento reformado do Exército e ex-combatente de Canudos, a Liga dos Republicanos Combatentes foi uma organização que fazia oposição ao então governador de Alagoas, Euclides Malta, e contava com o constante apoio de José Fernandes de Barros Lima, que viria a governar o estado anos depois.
O estopim para o ataque, aliás, foi a revelação de que Malta era frequentador de um terreiro. Segundo Andrade, a Liga seria, de fato, um aparelho político importante para Fernandes Lima, que hoje dá nome à principal avenida de Maceió.
Para o professor e babalaô Ivanir dos Santos, da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, as motivações sociais e políticas para o atentado de 1912 e os casos de intolerância religiosa registrados no século 21 são os mesmos.
“Na Quebra de Xangô, você usa uma justificativa política para extravasar toda a esfera preconceituosa, racista”, diz o professor. “O pensamento vigente, preconceituoso, de intolerância religiosa, do racismo religioso, ele vem de longe, não é novo.”
Invasões recentes a terreiros foram registradas, por exemplo, no Rio de Janeiro, onde traficantes ligados a igrejas neopentecostais têm ameaçado os praticantes das religiões de matriz africana.
“A sociedade precisa compreender que o ataque às religiões de matriz africana no Brasil é um ataque ao Estado laico, à democracia e às liberdades”, afirma o babalaô.
A violência contra a população negra em Alagoas atravessa os séculos. O estado tem atualmente a quinta maior taxa de homicídios de negros do país e é, ao mesmo tempo, o local mais seguro para pessoas não negras.
A taxa de homicídios de negros é de 67,9 por cada 100 mil habitantes no estado. Entre os não negros, cai para 3,7, segundo o Atlas da Violência 2019, que traz dados referentes ao ano de 2017.
Para o professor e historiador Zezito Araújo, da Universidade Federal de Alagoas, a queda nos índices de homicídio registrada nos últimos anos no estado, que foi o mais violento do país, não alcançou a população negra.
“Há programas de combate à violência no estado. No entanto, em relação à população negra, a violência não diminuiu. Não há uma política efetiva com esse recorte”, diz.
O professor afirma que o Estado brasileiro é racista e precisa ser repensado. “Ele [o Estado] não cria política efetiva para reduzir a violência acerca do negro. É [necessário] você criar, dentro da estrutura do Estado, órgãos ou instâncias para que possam dialogar com o movimento negro.”

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