LEONARDO VOLPATO
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Cuca, Boitatá, Saci, Curupira. Muita gente já escutou falar dos seres do folclore nacional que ficaram ainda mais em voga com a chegada da série brasileira “Cidade Invisível” (Netflix) . As lendas e tradições, porém, são muito mais antigas e cheias de detalhes.

Pais e professores têm como missão passar adiante todo esse conhecimento e manter vivas as tradições aos mais jovens. É o caso da psicopedagoga paulistana Carolina Benvindo de Sousa Bruna, 37, que faz questão de ler histórias das criaturas para a filha Melissa, 4, que já adora essa rotina.

“Um belo dia ela pegou um dos livros que eu tenho sobre folclore e começou a perguntar tudo sobre o tema. Como não conseguiu se aprofundar no colégio, fiz essa parte em casa. Da mesma forma como inserimos os clássicos infantis, fui mostrando as lendas para ela, que amou”, explica.

Bruna diz que a sereia Iara e o boto-cor-de-rosa estão entre os personagens favoritos da filha. “De uma forma divertida, ela vai aprendendo sobre natureza e os cuidados com o meio ambiente. Sempre trazendo para a nossa realidade. Percebo que nos distanciamos da natureza, mas nós somos parte dela”, reflete.

A professora paulista Dulcinéia Andreoli Coca, 43, costuma dar aula de arte e movimento e usa essa linha para ensinar e educar. “Vou falando das lendas, fazendo brincadeiras e atividades relacionadas a isso. Me parece que hoje em dia as crianças pararam de ter contato com essas coisas e é isso que não quero.”

A professora afirma que tem uma conexão especial com o folclore nacional desde criança e se chateia quando alguém o desvaloriza. “Saci, por exemplo, era representado na minha infância por qualquer rodamoinho que víamos na rua. Então, corríamos atrás da ventania pelas ruazinhas de terra”, relembra.

Algo semelhante acontece na vida em família da psicóloga paulistana Maria Lyra Muller, 35. Por todos os lugares pelos quais passa tenta encontrar algum livro ou objeto que remeta aos seres míticos do folclore. Tudo para passar adiante os conhecimentos ao filho, Otto, 4.

“Busco livros, bonecos, jogos sobre folclore. Quando comecei a ler livros para o meu filho vi o quão interessante poderia ser o aprendizado sobre a natureza, a fauna e a flora. Tem essa coisa de a criança gostar de misturar histórias com um pouco de mistério”, diz.

Uma forma que Muller encontrou para sempre manter presente os seres que Otto mais gosta foi associá-los ao dia a dia da criança. “Quando aparece uma bagunça em casa eu falo que foi o Saci quem aprontou. Os seres viram figuras de referência e meu filho aprende brincando.”

O professor paulista Alexandre Alves da Silva, 49, conseguiu usar sua experiência de docente e a atenção de pai coruja para encontrar uma fórmula para ensinar os alunos e o próprio filho, Henrique, 5, mais sobre cultura brasileira. Ele usa de teatralidade para tornar os ensinamentos mais lúdicos.

“Trabalho com as lendas e imprimo animação em objetos para que se transformem em personagens. Tenho uma série de fantoches e bonecos de manipulação que representam esses mitos. Brincar e ensinar por meio deles faz com que a criança imagine o ser como um super-herói. Isso vai mexendo com imaginário”, diz.

O sociólogo paulistano Horácio Ribeiro, 72, também não se cansa de passar aos mais novos toda a sua experiência quando o assunto é folclore. É no grande jardim de sua casa na zona oeste da capital paulista que costuma promover brincadeiras com seus sobrinhos-netos entre 3 e 10 anos.

“Comecei a passar a eles as historinhas do Boitatá, Curupira, Saci. Eu mesmo vou criando histórias. Quando eles vêm me ver, coloco um cachimbo na boca, penduro um gorro vermelho e um pé de meia vermelha no varal e digo que o saci passou pela casa. Então, começa a caçada”, revela.

Para o sociólogo, criar um mundo totalmente fantasioso, mas que seja verossímil para a criança, é a melhor brincadeira possível. E quando o dia é de sol, é na piscina da casa que a molecada brinca de procurar a sereia Iara. Elas também andam de marcha a ré para imitar o Curupira.

“As crianças criam na imaginação a imagem dos seres. De presente de aniversário, em vez de dar bobagem, eu mandava fazer camiseta com estampa do personagem do folclore e isso ia criando um vínculo com a criança”, afirma ele, que se diverte à beça com as brincadeiras, já que a mesma coisa ele já fazia com seus sobrinhos há 50 anos. É o folclore sendo perpetuado de geração em geração.

LICENÇA POÉTICA
A série brasileira “Cidade Invisível”, que acaba de ter anunciada sua segunda temporada na Netflix, aborda com licença poética o folclore brasileiro. A trama chegou à lista de conteúdos mais assistidos da plataforma por pelo menos um dia em mais de 40 países incluindo o Brasil.

Criada por Carlos Saldanha, conhecido pelas franquias animadas “A Era do Gelo” e “Rio”, além de “O Touro Ferdinando”, indicado ao Oscar de Melhor Animação, a trama transporta os seres e criaturas míticos aos tempos atuais.

Segundo especialistas, o modo como os seres foram caracterizados na série foi inteligente e necessário. “Qualquer iniciativa para resgatar essa parte da cultura nacional é válida, ainda que haja críticas. Se você tenta passar algo em uma linguagem antiga as novas gerações não vão pegar. A adaptação foi boa”, analisa Fernando Pereira, professor especialista em cultura brasileira da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Na história, o Saci (Wesley Guimarães), por exemplo, usa perna mecânica e vive na favela do Rio de Janeiro. A Cuca, interpretada por Alessandra Negrini, se transforma em vários animais o que representa a sua história na lenda das florestas.

Para Sérgio Rizo, professor que atua na área de geografia cultural e docente do curso de história e geografia da FMU, as licenças poéticas, ou seja, o aumento na adaptação de algumas histórias para que se tornem narrativas, foram positivas.

“As representações na série servem na verdade como anzol para quem se interessar por buscar mais informação. Por isso a importância de os professores utilizarem elementos como esse como pesquisa. A série coloca em voga a cultura e dá um start no interesse popular. O fato da licença poética existir não nega a temática”, avalia.

Haná Vaisman, gerente de conteúdo de séries originais brasileiras da Netflix, conta que “Cidade Invisível” nasceu de um desejo de resgatar personagens do nosso folclore. Ela comemora a boa repercussão.

“São histórias que fazem parte da memória afetiva dos brasileiros, mas que ainda não haviam sido abordadas com uma visão contemporânea. Ao mesmo tempo em que estamos celebrando o retorno positivo, reconhecemos que temos um compromisso ainda maior em fazer com que mais pessoas se vejam representadas nessa segunda temporada”, afirma.

O professor Fernando Pereira avalia que o Brasil é o país com a maior diversidade cultural do planeta e que isso é um dos pontos mais fortes da nossa representatividade cultural. Quanto mais for propagada, melhor.

“Pessoas que tentam levar nas escolas ou em casa as histórias da Cuca, Curupira e Saci conseguem preservar as tradições brasileiras. A sociedade tem que olhar para essas questões para a gente não se perder. Povo sem história é povo sem futuro”, diz.

O professor Sérgio Rizo concorda e destaca a importância de levar os ensinamentos adiante. “Como valorizamos e fazemos releitura pós-moderna das lendas, estamos resgatando a cultura nacional e fazendo a sociedade discutir pautas decorrentes disso, como desmatamento, as disputas de poder e de crenças.”

VALORIZAÇÃO DA CULTURA
Criada em 2003 após um incômodo com a expansão das celebrações do Halloween no Brasil, a Sosaci (Sociedade dos Observadores de Saci) tem como intuito valorizar o que há de melhor na cultura brasileira.

Com sede em São Luiz do Paraitinga (a 181 km de São Paulo), o projeto tem como proposta estudar e defender as brasilidades populares, dentre elas o folclore. Um dos fundadores, Mouzar Benedito, 74, diz que o saci é a melhor representação para o projeto.

“Nunca precisei explicar a lenda dele. O saci é protetor da floresta, ou seja, tem um lado ambiental que interessa para nós na divulgação dos nossos ideais. Mesmo tendo características que possam atiçar o preconceito, continua alegre”, diz.

Além de Mouzar, há 1.100 entusiastas do folclore e da cultura nacional difundindo esses ensinamentos ao redor do país. São pessoas filiadas ao projeto. “Começamos a fazer muitas palestras em escolas. Fizemos filme sobre o tema e publicamos um monte de livros. Nossos principais lemas são a defesa e estudo da cultura brasileira”, reforça Mouzar que festeja que o Dia do Saci é comemorado em 31 de outubro, mesma data da festa norte-americana do Dia das Bruxas.

Na visão dele, a melhor maneira de manter vivo o espírito do folclore é na escola. “O Monteiro Lobato [1882-1948] dizia que tinha que começar pelas crianças. Então, nas salas de aula, procuramos mostrar e fazer todas entenderem sobre os seres que protegem a natureza. Cada um é ligado a um elemento”, explica.

O fundador completa: “Fazer atividades, falar dos mitos e das lendas é propagar a nossa história. E sinto que temos resultado quando isso é feito logo na infância. São formas de ativismo da defesa da nossa cultura”, conclui.s olhos podem ficar cegas.

 

Foto de destaque: Agência Brasil

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