LUCIANO TRINDADE
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A divisão dos times em uma escolinha de futebol costuma ser um momento de expectativa e afirmação para os aspirantes do esporte. Todos querem ao menos evitar o constrangimento de ser o último escolhido pelos capitães. Ary Borges, 20, não conseguiu escapar disso.
Ela tinha dez anos quando seu pai a levou em uma das sedes dos Meninos da Vila, a escolinha do Santos, na Vila Mariana. Era a única menina naquela ocasião, após ele ter convencido o local a aceitá-la.

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Ansiosa, precisou ouvir o nome de todos os garotos serem chamados até só restar o seu. “Vem ela aí”, resignou-se o capitão que a escolheu.
“Naquele dia, eu fiquei muito triste”, conta Ary à reportagem. “Meu pai estava no alambrado e me disse: ‘eles vão quebrar a cara quando você jogar.'”
Quase dez anos depois, a jogadora tem confirmado as expectativas otimistas do pai. Em 2019, ela foi a capitã e um dos destaques da campanha que deu ao São Paulo o aceso à elite do futebol nacional. No início deste ano, se transferiu para o rival Palmeiras como um dos principais reforços do elenco.
Com a notoriedade que ganhou no meio, Ary passou a usar sua voz para defender as causas que a preocupam, sobretudo a igualdade de gênero e o combate ao racismo.
“Tudo que diz respeito ao ser humano é algo que me faz lutar”, diz a jogadora.
“Não gosto de injustiças. É totalmente ridículo, por exemplo, alguém se achar superior a outra pessoa porque um é branco e o outro é negro, ou dizer que o futebol não é para mulheres.”

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Natural de São Luís, no Maranhão, a meio-campista conviveu num primeiro momento com o preconceito relacionado às suas origens.
Até os dez anos, ela morava com sua avó materna, dona Lindalva, pois seus pais haviam mudado para São Paulo em busca de melhores condições de emprego.
Quando também se mudou para a capital paulista, Ary passou a sofrer com deboche por causa de seu sotaque. “Eu lembro que, no meu primeiro dia de aula, quando eu cheguei aqui, na quinta série, sofri muito bullying por causa do meu sotaque.”
O episódio ocorreu na mesma época em que ela foi deixada de lado pelos meninos na escolinha do Santos. Os dois casos ajudaram a atleta a despertar sua visão crítica sobre preconceito. “Nós, mulheres, quando começamos a jogar futebol, vemos essas coisas desde muito novas”, afirma.
A maranhense deu seus primeiros passos atrás da bola aos seis anos, incentivada pelo tio, Gabriel, que cuidava de um campo em São Luís.
A avó de Ary não gostava muito da ideia. Para ela, futebol era uma coisa que não dava dinheiro, “muito menos para meninas”.
A jogadora teve de batalhar para mudar a opinião de dona Lindalva. Depois de treinar por um ano com o time dos Meninos da Vila, foi levada pelo pai ao Centro Olímpico, também em São Paulo, e ingressou no time sub-15 com apenas 11 anos.
Ela foi uma das cinco selecionadas em uma peneira que contava com cerca de 90 meninas. Na época, sua família havia se mudado do Jaguaré, na zona oeste, para o Capão Redondo, na zona sul, o que fazia ela ter de gastar, em média, uma hora e meia até a sede do clube, próximo ao Parque Ibirapuera.
“Minha mãe não queria, mas meu pai era meio louco e falou: ‘vou ensinar uma vez, e nas outras você vai sozinha’. Eu ficava com medo, mas ia”, recorda Ary.
No Centro Olímpico, ela passou por todas as categorias até se profissionalizar, em 2015. Em 2017, veio a primeira grande chance de sua carreira, quando foi contratada pelo Sport. Atuou por dois anos pelo time de Recife até despertar o interesse do São Paulo.
Contratada em 2019, disputou 32 jogos e marcou cinco gols. Um deles contra seu atual time, do meio de campo, pelo Campeonato Paulista. Também teve destaque na disputa do Campeonato Brasileiro da Série A-2.

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No fim do ano passado, a capitã do São Paulo surpreendeu a diretoria ao não renovar seu contrato com o clube. O vínculo venceria no fim de dezembro. No início da atual temporada, ela acertou com o Palmeiras, o que causou irritação nos cartolas são-paulinos.
“Foi a melhor decisão que eu poderia ter tomado para a minha carreira. Em qualquer lugar que você trabalha, você sempre procura melhorias, e o Palmeiras me ofereceu isso”, argumenta Ary.
A meio-campista compara a estrutura que é oferecida ao time feminino alviverde com a que tinha no tricolor. “Aqui a gente tem uma academia que é nossa, temos liberdade de usar. No campo, a gente treina a hora que quiser. Lá era diferente. A gente dividia o campo com os sócios. Nunca tivemos nutricionista”, critica. “São fatores que pesaram.”
Procurado, o São Paulo, por meio de sua assessoria, afirma que, desde 2019, a equipe feminina possui um horário exclusivo para usar a academia, conforme a sua programação semanal, e não divide com nenhum outro grupo no momento reservado.
Diz, ainda, que o clube oferece três estruturas para que o time feminino treine: o complexo social do Morumbi, o CT da Barra Funda e o CT de Cotia. O grupo reveza os locais de trabalho durante a semana, de acordo com as necessidades e a programação da comissão técnica.
O São Paulo também está em processo de contratação de um fisiologista e já conta com nutricionistas.

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