“Estamos quites?”. Foi desse jeito que dom Aldo Gerna encerrou esta entrevista à Rede TC. Com essa elevada dose de humildade de quem teria uma suposta dívida de gratidão, o bispo emérito falou por quase uma hora, apaixonadamente como sempre, sobre a Igreja que ajudou a construir no norte do Espírito Santo. Pra ser preciso, mais que ajudou: liderou o processo de construção como um zeloso pastor. Aos 87 anos, o bispo que ensinou o povo a ligar a fé com a vida continua à frente do seu tempo, estudando profundamente a Igreja e o mundo ao redor, apontando caminhos, sempre lúcido, incisivo e… profético! “Não basta denunciar e dizer que falta tal coisa; vá e faça onde falta”.

Desde que chegou a São Mateus, há exatos 61 anos, a profecia tem sido uma companheira inseparável deste missionário comboniano nascido em Arigna, no município italiano de Ponte in Valtellina encravado nos alpes suíços, lugar de beleza exemplar que faz questão de mostrar, estampado em foto de um lado a outro da parede, a quem o visita na residência episcopal em Guriri. Numa avaliação das seis décadas de história da Diocese de São Mateus, dom Aldo destaca como principal acerto a opção pelas comunidades eclesiais de base.

Ele comemora também a consolidação de um clero com mais de 40 padres formados na própria Diocese e já até vislumbra a partilha de uma parte dos presbíteros para servir a outras igrejas. “Temos um clero fundamentalmente muito sadio, muito bom”, diz Dom Aldo. Admirador do Papa Francisco, surpreende-se com a oposição ao Pontífice, inclusive com engajamento de cardeais.

Ainda sobre a Cúria Romana, tem esperança em mais mudanças com a ação de Francisco, inclusive na eleição do sucessor. “Os tempos estão amadurecendo e não é impossível que o próximo Papa seja da África. O Espírito de Deus não está de férias, e menos ainda aposentado”.

A ENTREVISTA

Rede TC de Comunicações – Dom Aldo, o senhor é testemunha ocular dos principais fatos que marcam os 60 anos da Diocese de São Mateus. Quais as três ações mais determinantes para a consolidação desta imagem tão marcante que projetou a Igreja de São Mateus pelo Brasil e o mundo?

Dom Aldo Gerna – São duas ou três opções pastorais, mas com reflexos, claro, na vida pública, na vida política. A primeira e fundamental é a opção pelas comunidades, que demos uma tonalidade que não era conhecida ainda como comunidade eclesial de base, com critérios de levar a presença da Igreja a todos os fiéis da Diocese. Isso se verificou pela organização das comunidades, que não devem absolutamente ser confundidas com as antigas capelas. A estrutura externa, a visibilidade, pode até ser daquele jeito, mas o conteúdo é muito melhorado, é outra coisa. Não é uma construção perdida no meio das pastagens das grandes fazendas ou dos agrupamentos humanos nos pequenos patrimônios. Não é simplesmente um monumento, um prédio, mas um lugar onde o povo se reúne também para fazer, não só as manifestações do culto e sacramentos, mas tudo aquilo que vem atrás disso. Isto é, a mudança de vida, de perspectiva, a participação na vida pública, na vida social. Esta foi uma das coisas acertadas na Diocese de São Mateus: comunidades. Inclusive hoje tem uma mudança no pensamento da organização das paróquias. O estilo dos missionários combonianos era: paróquias grandes e grupos de padres, dois ou três, para atendê-las. Hoje a tendência é paróquias pequenas com um padre. É típico do clero secular. Não digo que é errado. É discutível. É a mudança talvez mais visível neste momento na Diocese. Eu até terminei o meu mandato com a ideia: padre sozinho numa paróquia nunca mais. Estava decidido isso. Que o padre encontre um companheiro com quem dialogar, com quem se confrontar, até com quem brigar em momentos oportunos. Isto é, uma vida mais humana. Quando o padre está na paróquia, que tenha um companheiro e não seja psicologicamente obrigado a procurar fora da casa canônica outras amizades, que são lícitas, mas são de outro gênero, de outro tipo.

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Rede TC – Qual a segunda opção determinante na consolidação desta identidade diocesana?

Dom Aldo – Outra opção muito forte é naturalmente a opção do dízimo, da organização da administração econômica da Diocese. Esta foi outra opção acertada. Até ao ponto de que seja uma das poucas, ou talvez única, Diocese no Brasil que levou a sério a manutenção pelo dízimo. Dízimo não é grande riqueza, é austeridade, economia. Mas já estamos com 40 anos que o dízimo mantém a estrutura fundamental da Diocese. Só quando há despesas extraordinárias, quando aumentam as igrejas, fazem casas canônicas e outras construções semelhantes, aí o dízimo não dá e tem que recorrer ainda a outras fontes. Eu acho que não deveria mais acontecer leilões. Pior ainda: nunca, nunca, nunca aceitar presentões de políticos para fazer um leilão em benefício da Igreja. Aqui implica outra opção, discutível, mas que achei muito acertada: o abandono da responsabilidade com obras sociais, como escolas ginasiais, jardins de infância, hospitais e coisas semelhantes. A responsabilidade dessas atividades, social e política, é do governo. Não é a Igreja que coleta impostos para essas coisas. Essa decisão nos deu uma liberdade que você não imagina. Nunca mais tive necessidade de me ajoelhar diante de políticos para pedir verbas para manter essas obras, que devem ser mantidas na responsabilidade da sociedade. Isso não significa que a Igreja abandonou a sua ação social. Muito ao contrário, já que o poder político nunca chega a todos. A Igreja deve sempre chegar para alguma suplência, principalmente com o preceito da caridade, já que lutamos contra a pobreza. Temos a opção pelos pobres, principalmente preocupados com a classe mais humilde.

Rede TC – E a conscientização dos católicos?

Dom Aldo – Naturalmente tem a formação das lideranças. Nossa tonalidade mudou. De uma mentalidade até paternalista, passamos para uma de conscientização. Quantas vezes usamos essa palavra ‘conscientizar’, quer dizer tornar conscientes das realidades políticas, sociais e da obrigação do cristão, que é cidadão como os outros, mas com outra mentalidade, que acredita num mundo melhor possível. É possível: é só começar a fazer alguma coisa que repercute. Achamos, em função daquilo que chamamos de Igreja-Corpo Místico, que toda coisa boa que qualquer humano faça repercute em todo o conjunto das coisas. E vice-versa: todos os malefícios feitos por alguém repercute no sentido negativo.

Rede TC – Que frutos o senhor destaca na obra dos missionários combonianos na formação da Diocese de São Mateus?

Dom Aldo – Diria que a obra comboniana é pioneira. É como derrubar uma floresta para transformar em lugar de vivência humana. Esta é uma figura, uma imagem, que significa que nossa obra de combonianos acabou aqui, no sentido de que tem uma Igreja organizada, com as estruturas fundamentais e principalmente com o dom principal que aconteceu, que é a ordenação de mais de 40 padres. E diria que, como sobremesa extraordinária, o Pai nos deu a nomeação de dois padres nossos para a tarefa de bispos. Por sinal, para o Nordeste, nos lugares mais difíceis. Significa, com certeza, uma confiança na Diocese, ao pegar aqui duas pessoas para levá-las lá. Tenho consciência até que Roma chegou a fazer porque solicitei, falando ‘vocês só criticam as comunidades e nós achamos que é o único caminho aqui’. O Papa chegou até a fazer uma exortação às comunidades capixabas. Foi inteligente. Não foi só para São Mateus, foi para os capixabas.

Rede TC – A formação do clero tem sido prioridade desde o início. O trabalho levou tempo para dar frutos, mas, entre os pioneiros, dois foram nomeados bispos…

Dom Aldo – Exatamente. Levaram dois dos melhores, sem desmerecer os outros, no sentido eclesial, de capacidade humana, de comunicar. Temos um clero fundamentalmente muito sadio, muito bom, e que está cumprindo a missão. Sempre tem falhas, claro, somos humanos. A Igreja é santa e pecadora, e também o clero, que é santo e pecador. E também os bispos. O Papa continua a dizer que ele também é pecador e precisa de oração. É claro que somos salvos por Cristo, de maneira gratuita. As coisas boas que fazemos devem ser demonstrações de que assimilamos e aceitamos a salvação que Deus nos ofereceu.

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Rede TC – No lombo de cavalos, em motos, jipes, barcos, o senhor ajudou a desbravar o norte capixaba. Está feliz com o que vê atualmente?

Dom Aldo – Devemos reagir como nos ensina o Evangelho: “Quando tiveres feito tudo o que deviam fazer, reconheçam que são servos inúteis”. Tenho uma enorme gratidão a Deus pela vida que deu a mim, pelo lugar onde me colocou para servir a Igreja e por todo o trabalho que aqui aconteceu. Ao mesmo tempo, existe a consciência de que há muitos passos ainda a fazer. Hoje precisa se preocupar menos com estruturas, porque elas já existem, foram feitas. Atualmente são 26 paróquias –eu deixei acho que 18. Afinal, a estruturação, a organização da Diocese, existe, mas tem que fazer aprofundamento. Está quase chegando, inclusive, à situação de emprestar clero, a ajudar outras dioceses mais pobres com o nosso clero, que começa a chegar quase a um suficiente razoável. Diria até que, com um pouquinho de esforço, poderia ajudar a outras gentes. Um lugar que foi missionado, onde houve uma missão que o transformou, se torna, por sua vez, missionário, à disposição do mundo.

Rede TC – O senhor chegou a ficar decepcionado, em algum momento, nestes 60 anos de caminhada?

Dom Aldo – Minha impressão, um tanto negativa, é que não foi ainda entendido o sentido da participação na vida social e política dos cristãos. Esta tal conscientização é ainda muito superficial. Até ao ponto, e isto é terrível para mim, de perceber que o PT, alguns movimentos sociais, querem chegar ao poder, mas para continuarem com o sistema. Aí não muda nada. Continuar significa todas as corrupções, a preferência das obras sociais para os amigos, e não para o povão, e coisas semelhantes. Nesta parte, eu sinto-me não realizado, embora não seja tudo negativo. Tem por aí gente boa e até esta missão popular, uma revelação. São milhares de leigos levando a presença da Igreja, com o projeto de visitar todas as famílias, católicas, não-católicas, ateias, da Diocese. Visitá-las todas, em especial atenção aos casos humanos extraordinários, por exemplo, os deficientes físicos.

Rede TC – As CEBs ainda têm espaço na Igreja atual, ou acabaram virando miniparóquias?

Dom Aldo – Deus me perdoe! Temos um Papa que parece receber de Deus a tarefa de desmontar as nossas certezas, colocar um pouco de dúvida, para aprofundar mais e realmente chegar onde precisa. Os pobres diziam a ele: “Não vamos à Igreja porque não tomamos banho, somos malcheirosos”. O Papa mandou construir banheiros para eles. Não resolveu o problema do mundo, mas deu exemplo. Não basta denunciar e dizer falta tal coisa; vá e faça onde falta. O assustador é que tem cada dia mais organizada a oposição a este Papa, até com cardeais, que deveriam ser os primeiros colaboradores. Os cardeais são os primeiros colaboradores do Papa, não é uma honraria. E este Papa entende isso muito bem. Os cardeais que nomeou não são os grandes luminares teológicos e tal, mas representantes das igrejas do mundo. Isto significa, por exemplo, que a eleição do próximo Papa será feita um pouco pela Igreja toda, pelos representantes de todo o mundo. Eu lembro que, quando veio a faltar o Papa João XXIII, depois Paulo VI, alguém perguntava quem deveria ser o Papa. Eu respondi: ou da América Latina, ou da África; não da Europa. Os tempos estão amadurecendo e não é impossível que o próximo seja da África. O Espírito de Deus não está de férias, e menos ainda aposentado.

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Rede TC – Como tem sido acompanhar as mudanças na Igreja e no mundo?

Dom Aldo – A vida hoje é outra. As dificuldades, os problemas atuais são mais sérios. No início, era resistir fisicamente. Eu dizia que os meus maiores inimigos eram as pulgas, os carrapatos e os mosquitos. Hoje, é ser capaz de perceber os sinais dos tempos e dar respostas adequadas. Esta é uma categoria social, mas que o Papa João XXIII, de algum modo, consagrou teológica. Significa: o que o Pai do Céu nos quer dizer através dos acontecimentos do mundo. João XXIII disse, por exemplo, que um dos sinais dos tempos é a ascensão das mulheres dentro da Igreja e no mundo. É verdade que as mulheres estão longe ainda daquilo que desejam, mas se você pensa que não podiam nem entrar no presbitério –tinha balaústre– e nem tocar nos vasos sagrados –hoje elas dão a comunhão. São pequenas coisas, mas… Tem até meio que uma piada que diz que elas conquistaram o microfone, falam na Igreja, mas querem conquistar o altar, presidir as missas…

Rede TC – Está chegando a hora?

Dom Aldo – Até boto as mãos na cabeça… Veja o que vai publicar, hein…

Rede TC – Como é a rotina do senhor atualmente em Guriri?

Dom Aldo – É uma vida de aposentado não desempregado. O que significa isso? Como aposentado, não tenho mais responsabilidades. Mas sou mantido pela Diocese, pois não tenho tesouros acumulados. Não tenho nada, não. Recebo até uma pequena aposentadoria, que é um salário mínimo. É uma esmola que me dão e que eu destino para ajudar outros. Mas não estou desempregado porque todo domingo vou a uma comunidade para celebrar. E todo dia celebro aqui, na minha capelinha, onde sempre vem um grupinho de pessoas. Vou muitas vezes visitar doentes e fazer as exéquias dos finados lá na Capela Mortuária. Uma vez ou outra, vou a uma paróquia para alguma festa.

Rede TC – O senhor tem ido à praia?

Dom Aldo – Há anos que eu não tomo banho de mar. Nos primeiros tempos, eram quase todos os dias. Agora até a caminhada quase sempre faço por aqui mesmo. Tenho artrose e outros problemas. Falo que, do peito pra cima, está melhor, mas, para baixo, é problema. E gasto muito tempo para preparar uma homilia. É claro que é uma homilia mais séria –não diria que é melhor. Estamos quites?

O BISPO

Ordenado sacerdote na Basílica de São João de Latrão, em Roma, no dia 22 de dezembro de 1956, Aldo Gerna começou sua missão no norte do Espírito Santo como vigário paroquial em São Mateus, de 1957 a 1962. Ainda como padre, estudou Sociologia em Roma, onde acompanhou de perto o Concílio Vaticano II. Do lado de cá do Atlântico, atuou ainda como chanceler, vigário geral e, claro, assessor das pastorais sociais da Diocese.

Logo que completou 40 anos de idade, foi eleito segundo bispo de São Mateus, no dia 24 de maio de 1971. Com o lema episcopal Sei em quem acreditei, escolheu São Mateus para a sagração episcopal, e imediata posse, no dia 1° de agosto de 1971, no local onde hoje está construída a Catedral. Nos anos difíceis da ditadura militar, liderou a construção da Diocese com o foco na proteção aos mais pobres e desamparados. Embora ameaçado de morte inúmeras vezes, brinca que seus “maiores inimigos eram as pulgas, os carrapatos e os mosquitos” nos tempos de pioneirismo.

Dom Aldo realizou cinco grandes visitas pastorais, constituiu sete paróquias (Jaguaré, Pedro Canário, Boa Esperança, Santo Antônio, Guriri, Vila Pavão e Ponto Belo), ordenou 35 padres e inaugurou novos seminários, a Catedral e o Mosteiro Beneditino da Virgem de Guadalupe. No dia 3 de outubro de 2007, teve a renúncia aceita pelo Papa Bento XVI.

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