FÁBIO ZANINI
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – As cenas de filhos de um ex-presidente acuados e de generais outrora temidos caindo em desgraça tornaram-se parte da rotina dos angolanos.
Num país governado de forma autocrática até recentemente, o cenário tem ecos do choque causado no Brasil pela Lava Jato. O lance mais dramático aconteceu no último dia 19, com a divulgação de documentos batizados de “Luanda Leaks”.
Os papéis contêm evidências robustas de desvios de dinheiro público por Isabel dos Santos, 46, filha mais velha do ex-presidente José Eduardo dos Santos, 77, que governou o país por 38 anos (1979-2017).

Palácio presidencial da Angola. Foto: Reprodução

Considerada a mulher mais rica da África, com fortuna de US$ 2 bilhões, ela teria se apropriado de recursos do Estado em setores como petróleo, diamantes e telecomunicações, por meio de uma rede de empresas de fachada.
Seu irmão mais novo, José Filomeno, 42, está sendo julgado sob acusação de desviar US$ 500 milhões (R$ 2 milhões) do Banco Central angolano. Ele chegou a ficar seis meses preso.
Ex-sócio de Isabel, o general Leopoldino Fragoso Nascimento está colaborando com os investigadores e terá de entregar parte de seu patrimônio ao Estado. Há dezenas de outros casos parecidos.
“É uma situação que há três anos ninguém poderia imaginar”, diz Rafael Marques, principal jornalista investigativo angolano, que se especializou em revelar casos de corrupção e foi preso e processado pelo regime anterior.
“Eu me acostumei a ver minivans com agentes em frente à minha casa. Agora, quando escrevo sobre corrupção, os procuradores não usam as informações para me processar, usam para investigar os denunciados”, afirma ele.
A mudança surpreendente na política angolana começou com o rompimento entre o atual presidente, João Lourenço, e seu antecessor, de quem foi ministro da Defesa.
Eleito em 2017 confortavelmente montado na máquina do MPLA (Movimento Popular Pela Libertação de Angola), partido que se confunde com o Estado, Lourenço virou-se contra o ex-mentor.
Um de seus primeiros atos foi afastar Isabel, hoje refugiada em Londres, do comando da Sonangol, a estatal petrolífera que controla um setor responsável por 80% do PIB do país.
O gestou inesperado funcionou como uma espécie de salvo conduto para um Poder Judiciário que sempre se comportara como um braço do Executivo. Investigações, indiciamentos e prisões se sucederam em ritmo acelerado.
Os motivos que levaram Lourenço ao rompimento com o antecessor são motivo de debate entre analistas.
“Há uma percepção em Angola de que a ofensiva não é uma limpeza total dos corruptos, mas um jogo político mais focado na família e alguns poucos aliados do ex-presidente”, diz o português Ricardo Soares de Oliveira, professor de ciência política na Universidade de Oxford e autor do livro “Magnífica e Miserável: Angola desde a Guerra Civil” (editora Tinta da China).
O ex-presidente está morando em Barcelona, de onde tenta responder à torrente de acusações contra si e sua prole. A lei garante a ele imunidade penal até 2022.
Na avaliação de Oliveira, Lourenço mirou os interesses de Santos porque o ex-presidente é um alvo fácil. “A família Dos Santos é impopular em Angola. Virando-se contra ela, o presidente não só tomou uma decisão bem recebida por muitos angolanos, como deu ao partido no poder um álibi: ‘Não fomos nós, foram eles, essa família de corruptos'”, afirma.
Por enquanto, o cálculo do presidente tem funcionado. Não houve manifestações de rua de grande porte no país, apenas protestos isolados.
A indignação popular tem ficado restrita à antiga elite que perdeu o poder junto com o ex-presidente, sem se voltar contra o MPLA. O partido de origem marxista-leninista governa Angola desde a independência, em 1975.
Outro fator que pode ter motivado Lourenço é a situação econômica desastrosa.
Depois de ter tido picos de crescimento de até 15% na década passada, em razão do boom do petróleo, Angola entrou em depressão com a queda do preço do barril.
O PIB caiu nos últimos quatro anos, o que pode se repetir em 2020, embora o FMI aposte em elevação de 1,2%. Mesmo que haja crescimento, será insuficiente para baixar significativamente a taxa de desemprego de mais de 30%.
“Há uma tentativa do presidente de gerar capital politico, já que a economia está em péssimo estado, e o governo não está em posição de mostrar melhorias a curto ou médio prazo”, diz Oliveira.
Estudiosa de Angola há duas décadas, a pesquisadora britânica Christine Gordon afirma que a sociedade do país tem um sentimento ambivalente sobre a prioridade dada por Lourenço à corrupção.
“Isso é popular? Sim e não. As pessoas não conseguem ver benefícios diretos para suas vidas. Querem direitos, habitação, empregos. O presidente precisa entregar algo urgentemente”, afirma Gordon, que trabalhou em diversas consultorias de risco e investimento baseadas em Londres.
Uma de suas áreas de pesquisa é o setor de diamantes, onde Isabel também tinha interesses, inclusive em parceria com a Odebrecht numa mina no país. “Diamantes e corrupção sempre andam juntos, e em Angola esse ditado foi especialmente verdadeiro”, diz.
Ela vê risco para o futuro da cruzada anticorrupção caso o círculo de investigados se amplie demais. “Muitas pessoas se beneficiaram da corrupção em Angola, mesmo em escalões inferiores.”
Embora haja uma certa abertura, a oposição segue sendo frágil, os órgãos de investigação são desestruturados e as forças de segurança reprimem atos pacíficos.
Na quinta (23), dez ativistas e dois jornalistas da Agência Lusa foram detidos em uma manifestação em Luanda. Foram liberados, mas o gesto serviu para mostrar que Angola ainda está longe de ser uma democracia plena.

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