EDISON VEIGA
BLED, ESLOVÊNIA (FOLHAPRESS) – Os quatro últimos parágrafos –antes da conclusão final– do relatório apresentado ao papa Francisco no encerramento do Sínodo da Amazônia pedem que a Igreja Católica reconheça um rito amazônico.

Citando o Concílio Vaticano 2º, que ocorreu entre 1962 e 1965 e promoveu uma abertura da igreja aos novos tempos, os bispos enfatizaram a necessidade do “pluralismo litúrgico” e solicitaram variações e adaptações correspondentes aos povos indígenas, porque “a liturgia deve responder à cultura”.

“Devemos dar uma resposta verdadeiramente católica ao pedido das comunidades amazônicas para adaptar a liturgia, valorizando a visão de mundo, tradições, símbolos e ritos originais que incluem dimensões transcendentes, comunitárias e ecológicas.”

A recomendação, feita no encontro realizado em outubro para discutir a presença da igreja na Amazônia, aguarda agora a chamada exortação apostólica, um documento com as diretrizes do papa.

Em algumas comunidades a presença desse rito já ocorre. Italiano que vive há 14 anos em aldeia ticuna perto de Tabatinga (AM), frei Paolo Maria Braghini tem se esforçado por incorporar tradições indígenas em missas.

“É difícil generalizar como seria um rito amazônico, pois cada etnia tem uma história, uma cultura e uma língua. Mas em geral os povos amazônicos são simples, não têm cultura escrita”, afirma ele, que é frade capuchinho. “Nossa liturgia é muito cheia de palavras. Eles são muito práticos.”

As músicas são um exemplo. De acordo com Braghini, os rituais indígenas consistem de cantos de “poucas palavras repetidas muitas vezes” e a “liturgia vai assumindo isso”. Ele também está atento a atos altamente simbólicos. “No caso dos ticuna, a pintura em jenipapo deve ser introduzida [na liturgia] e acolhida, junto aos símbolos principais da etnia.”

“Aos poucos, eles estão sentindo que podem celebrar do jeito deles. No começo, tinham medo de fazer algo diferente”, diz o religioso.

Para os ticuna, o canto em honra à Nossa Senhora da Assunção, padroeira da Diocese de Alto Solimões, já é “Tupana Nae arü taunecü arü wiyae” –literalmente, “Nossa Senhora assunta aos céus”.

Padre sinodal, dom Ernesto Romero, bispo do vicariato apostólico de Tucupita, na Venezuela, espera que uma maior clareza sobre o que deve ser feito venha na exortação apostólica do papa Francisco, com as considerações sobre o sínodo. “Ele se comprometeu a apresentar [o documento] antes do fim do ano”, afirma.

“A tradição dos ritos fez um caminho em torno de um idioma e um grupo étnico. A Amazônia é plena de povos, identidades variadas e modos de vida. Não sei se um rito pode respeitar tal caleidoscópio cultural tão vasto”, afirma o teólogo e filósofo Fernando Altemeyer, professor do Departamento de Ciência da Religião da PUC-SP.

Para ele, a igreja deve “primeiro ‘amazonizar-se’ para depois falar de um rito ou ritos amazônicos”.

“Será preciso ter inserção e mergulho nas várias águas da bacia amazônica para depois confirmar ritos e memórias que possam ser postas em comunhão com as outras igrejas e outros ritos.”

Acadêmicos se preocupam com uma possível colonização cultural. “A igreja, em pleno século 21, insiste em um processo de evangelização que ecoa em muito aquele realizado pelos jesuítas nos primórdios da colonização”, critica o antropólogo Pedro de Niemeyer Cesarino, pesquisador de etnologia indígena e professor da USP.

Ele cita como exemplos de estratégias a tradução de textos em línguas indígenas e a criação de uma liturgia adaptada, “que pretende sobrepor a fé e os valores cristãos às culturas indígenas”.

“Por que, efetivamente, seria necessário tal rito?”, questiona Cesarino. “Parece haver um pressuposto de que as culturas indígenas são inferiores, de que precisam de algum complemento externo.”

O antropólogo da USP defende que a igreja deveria se circunscrever “à posição de assistência social e sanitária”.

“Essa forma de assistência pode ser muito relevante para os povos indígenas, em especial no atual contexto de perseguição e de desmonte das políticas de Estado. Tal compensação já justificaria por si só o maior dos valores cristãos, a fraternidade, dispensando a insistência em um proselitismo anacrônico e colonialista.”

Sua colega, a antropóloga Marta Amoroso, prefere enaltecer o fato de a igreja ter lançado, com o sínodo, um olhar sobre a Amazônia em um cenário de crise ambiental. Ela cita políticas “de estímulo e apoio aos megaprojetos das hidrelétricas, das petroleiras, da exploração de minérios, das atividades da monocultura, de concessões de áreas florestais e de programas de privatização do uso da água em curso na região”.

“[Quanto ao rito], é importante entender que a atitude do Vaticano se respalda na temática da igreja inculturada, que afirma que a liturgia deve buscar expressar o mistério de Cristo em matizes particulares das culturas locais.”

Amoroso recorda que durante os encontros preparatórios do sínodo, os índios tucano do noroeste amazônico, “que se afirmam católicos praticantes, esperavam da igreja o reconhecimento dos erros do passado: a violência física praticada nos internatos católicos, os programas educacionais de viés aculturativo baseados no apagamento das línguas indígenas, das concepções e das práticas dos povos indígenas”.

Por outro lado, há quem defenda que somente com a criação de um rito amazônico as outras mudanças solicitadas no relatório final do sínodo podem vir a acontecer.

“Dentro de um rito específico se pode pensar melhor casos específicos, como a ordenação de padres casados e a criação de mulheres diaconisas”, disse o padre sinodal Justino Sarmento Rezende, índigena tuiuca, em conversa via WhatsApp com o frade capuchinho Paulo Xavier Ribeiro, pároco da Igreja de São Sebastião, de Manaus. “Esses temas não cabem bem no rito romano.”

Para isso, lembra Rezende, será criado um dicastério amazônico dentro do Vaticano –e o órgão fará estudos. “Também será feita uma conferência pan-amazônica para tratar de concretizar tudo aquilo que foi tratado no sínodo.”

Ex-presidente do Conselho Indigenista Missionário, órgão da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, o padre alemão Paulo Suess avalia que “um rito amazônico seria pouco”. “Precisa-se abertura para a criatividade das comunidades e dar [a elas] apenas uma moldura que permita liberdade para essa criatividade.”

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