FERNANDA CANOFRE
BELO HORIZONTE, MG (FOLHAPRESS) – Quando Matheus Pires Barbosa, 19, falou para os outros colegas entregadores do IFood o endereço da próxima entrega que faria, em um condomínio de Valinhos (SP), no dia 31 de julho, ouviu: “Boa sorte”.
O cliente que receberia o pedido era conhecido por alguns deles por exigir que caminhassem até a porta da casa com a entrega, enquanto a maioria das pessoas costumava esperar junto ao portão da residência. Matheus resolveu então comentar com o cliente, em tom de brincadeira, a impressão que ele havia deixado nos outros trabalhadores.
Um vídeo registrado por uma testemunha, da discussão aberta entre eles a partir disso, viralizou nas redes sociais nesta sexta-feira (7), com o homem chamando o entregador de lixo e inferindo que ele teria inveja da pele branca.
O caso foi registrado como injúria racial na delegacia de Valinhos ainda no dia 31 de julho.
“As partes foram ouvidas e a vítima orientada quanto ao prazo de seis meses para representação criminal contra o autor”, afirmou a Secretaria de Segurança Pública.
O entregador tem seis meses para representar criminalmente contra o agressor. A pena máxima prevista para o crime de injúria é de três anos e, ao contrário do racismo, ele pode ter fiança.
No boletim de ocorrência, Pires diz que o homem começou a ofendê-lo, depois dos comentários, dizendo coisas como: “preto, favelado, pobre, olha seu tênis furado”.
Durante o depoimento que prestou às autoridades, o agressor confirmou o uso dos termos favelado e pobre, mas negou ter feito ofensa com relação à cor do entregador. O registro da ocorrência, porém, afirma que ele voltou a repetir as ofensas diante dos policiais.
A discussão começou, segundo o cliente, porque o entregador afirmou que ele seria mal falado entre os motoboys. Ele alega ainda que o entregador teria investido contra ele.
No vídeo de um minuto e meio, o homem declara ao entregador: “Aqui não vai acontecer nada. Com você, lá para a frente, não sei, morou? Você sabe o que vai acontecer no futuro? DesempregadoVocê trabalha de motoboy, filho”.
Ele chama Matheus de lixo, semianalfabeto, diz que ele tem inveja das famílias que vivem no condomínio e aponta para o próprio braço, dizendo que o jovem teria inveja também da sua pele branca.
O entregador questiona o que sua profissão tem a ver e oferece seu telefone para que o homem veja no aplicativo quanto ele recebe com seu trabalho.
“Eu tenho uma vida fora daqui”, diz Matheus. “Eu posso ter a mesma coisa que o senhor. O senhor conseguiu por quê? Por que o seu pai te deu ou por que você trabalhou?”.
Outro homem que também aparece nas imagens pergunta por que eles vão seguir a discussão e Matheus responde que está esperando a viatura da Guarda Civil Municipal, para que o homem não volte a fazer aquilo com outras pessoas.
O vídeo foi publicado nas redes sociais pela mãe de Matheus, Maria Pires, 43, nesta quinta.
Criada por uma mulher negra, ela diz que o filho, que teve o nome inspirado na Bíblia, nunca tinha passado por isso.
“Não é por dinheiro, não é por nada. É por justiça. Isso tem que parar de acontecer, porque é todo dia um caso assim”, afirmou à reportagem.
“Para mim é a pior coisa do mundo ver meu filho passar por uma situação daquelas, porque a maneira que eu criei meu filho e fui criada, eu aprendi a ter respeito pelo ser humano, não importa classe social ou cor da pele”.
Em nota, o IFood diz que baseado nos termos do aplicativo, descadastrou o agressor como usuário e que irá oferecer apoio jurídico e psicológico a Matheus.
A plataforma também diz que recomenda que haja registro de boletim de ocorrência em casos como este e que se faça contato com a empresa enviando uma cópia.
“Racismo é crime. O IFood condena qualquer forma de preconceito ou discriminação e por isso presta solidariedade e apoio ao entregador Matheus, vítima do crime racial praticado por um consumidor”, diz o texto.
O presidente da República, Jair Bolsonaro, também comentou o ocorrido.
“Independentemente das circunstâncias que levaram ao ocorrido, atitudes como esta devem ser totalmente repudiadas”, escreveu, em uma rede social. “A miscigenação é uma marca do Brasil. Ninguém é melhor do que ninguém por conta de sua cor, crença, classe social ou opção sexual”.
Em coletiva, na tarde desta sexta, o delegado titular de Valinhos, Luís Henrique Apocalypse Jóia, disse que constou no boletim de ocorrência que o pai do agressor teria exibido um documento apontando que o filho sofre de esquizofrenia.
“Assim que houver a representação por parte da vítima, e nós iniciarmos [inquérito], vamos checar se tem ou não esse documento”, explicou o delegado, que não estava de plantão no dia do registro. Ele afirmou ainda que o agressor não tem antecedentes criminais.
Até a publicação deste texto, a reportagem não conseguiu contato com o homem que aparece no vídeo ofendendo o entregador.