PAULA SPERB
PORTO ALEGRE, RS (FOLHAPRESS) – Rec. 550. Plata. SeCrEtO. A sequência, aparentemente sem sentido, lembra um “captcha” -teste rápido com preenchimento de letras para comprovar que o acesso a um site está sendo feito por uma pessoa, não por um robô.

Trata-se, porém, de partes de arquivos da ditadura militar do Uruguai (1973-1985) que agora são “decifrados” com ajuda de voluntários que fazem a leitura dos trechos para transcrevê-los.

A transcrição é necessária porque os cerca de 3 milhões de arquivos estão digitalizados em forma de imagens, como fotografias digitais, impedindo a pesquisa por palavra-chave, por exemplo.

Malconservados, alguns escritos à mão, outros datilografados com muita ou pouca tinta, não podem ser escaneados por leitores ópticos que identificam os caracteres automaticamente.

Humanos ainda são indispensáveis para essa tarefa. O esforço conjunto foi batizado de Luísa (Leyendo Unidos para Interpretar loS Archivos). O nome é uma homenagem à Luisa Cuesta (1920-2018), militante uruguaia que se dedicou à busca do filho preso e desaparecido na mão dos militares.

“Para garantir que a transcrição seja exata, para que não tenha erros, propositais ou não, cada bloco de palavras só é considerado pronto quando cinco pessoas fizeram a leitura. Por isso, precisamos de centenas de milhares de voluntários”, explica o engenheiro Gregory Randall, professor da Universidad de La República (Udelar), em Montevidéu.

Brasileiros também podem ajudar. “Não é necessário falar espanhol. Basta transcrever os caracteres que está enxergando na tela”, explica Randall.

Os trechos são gerados aleatoriamente e um contexto é fornecido para auxiliar a compreensão. Alguém pode confundir dois “i” maiúsculos com dois “l” minúsculos, por exemplo (II e ll). O algoritmo da ferramenta entende que, se a maioria dos cinco voluntários respondeu de uma maneira, aquela é a correta.

Com a suspensão das aulas presenciais da Udelar por causa da pandemia do novo coronavírus, os servidores ficaram sobrecarregados com as atividades virtuais. Por isso, “Luísa” precisou ganhar um servidor próprio para funcionar adequadamente, diz Randall. A ideia é que voluntários possam aproveitar o tempo livre da quarentena para colaborar.

Os documentos já transcritos ainda não são públicos. “Precisamos de uma base mínima para disponibilizar para pesquisa externa”, explica Samuel Blixen, professor da Faculdade de Informação e Comunicação da Udelar.

Entretanto, o material já transcrito mostra a importância da preservação da memória do período.

“Luísa” foi lançado em 2019, em parceria com a organização “Mães e Familiares de Presos e Desaparecidos” e com o grupo de trabalho “Verdade e Justiça”, ligado à Presidência durante a gestão do ex-presidente Tabaré Vázquez, da coalizão de esquerda Frente Ampla.

A equipe da Udelar, ao analisar os primeiros resultados, forneceu os documentos para auxiliar vítimas que processam seus torturadores.

“Um oficial do Exército negava que havia torturado presos. Apesar dos testemunhos, ele dizia que estava em outros lugares nas ocasiões de torturas e que não pertencia a um setor que fazia repressão. Entretanto, encontramos documentos onde ele aparece diretamente envolvido na unidade onde ocorriam as torturas e que estava, sim, no organismo repressivo”, explica Blixen.

Isso permite que as vítimas apresentem as provas -documentos do próprio Exército- no processo, diz o professor.

Blixen foi um militante tupamaro e foi preso pela ditadura pelo caso da morte de um ministro apontado como idealizador do chamado “Esquadrão da Morte”, grupo de extrema direita que sequestrava e torturava militantes e seus familiares.

“Os arquivos conduzem para conhecimentos novos de fatos passado”, explica Blixen, que ajudou a fundar em 1985 o jornal semanário Brecha, onde ainda trabalha e pelo qual passaram nomes como Mario Benedetti e Eduardo Galeano.

Sobre quais fatos os documentos podem jogar luz? “Estamos falando de torturas, de assassinatos, de desaparecimentos, de roubo de crianças, violações de mulheres, de tudo que identificamos como terrorismo de estado”, diz o professor.

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