REINALDO JOSÉ LOPES
SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS) – O papa escolheu o dia dedicado a são Francisco de Assis, santo que inspirou o nome adotado por ele como pontífice, para publicar um chamado à fraternidade universal em que ataca as injustiças do capitalismo global, pede que os imigrantes sejam acolhidos e defende o diálogo entre religiões e culturas diferentes.
“Fratelli Tutti” (“Todos Irmãos”, em italiano), a nova encíclica do papa Francisco, foi assinada por ele em Assis (cidade natal do santo, na Itália central) em 3 de outubro, data em que o fundador dos franciscanos morreu em 1226, e teve seu conteúdo divulgado no dia seguinte.
É a primeira vez que um desses documentos papais é assinado fora de Roma. Também foi a primeira vez que o papa Francisco saiu do Vaticano e da capital italiana desde o início da pandemia causada pelo novo coronavírus. Assis, normalmente cheia de peregrinos e turistas do mundo todo, estava quase vazia durante a visita do pontífice argentino, que celebrou uma missa para poucas pessoas na cripta onde são Francisco está enterrado e preferiu se manter em silêncio depois do rito.
O simbolismo da carreira do santo medieval está presente desde os primeiros momentos do pontificado de Jorge Bergoglio, guiando sua preocupação com o que chama de “uma Igreja pobre para os pobres” e com a preservação ambiental. O título do novo documento também veio de um dos textos do religioso, tal como aconteceu com “Laudato Si'”, a encíclica “verde” do papa, publicada em 2015.
Logo no começo da nova missiva, no entanto, o papa decidiu destacar outro aspecto da vida de são Francisco: sua decisão de visitar pacificamente os muçulmanos do Egito e seu sultão, Malik-al-Kamil, numa época em que cristãos e seguidores do Islã guerreavam pelo controle da Terra Santa, durante as Cruzadas.
“É impressionante que, há oitocentos anos, Francisco recomende evitar toda forma de agressão ou contenda e também viver uma ‘submissão’ humilde e fraterna, mesmo com quem não partilhasse a sua fé”, escreve o papa, numa provável referência ao próprio Islã, termo que etimologicamente significa algo como “submissão a Deus” em árabe. “Não fazia guerra dialética impondo doutrinas, mas comunicava o amor de Deus.”
Além das ações do santo, outra inspiração para a encíclica, segundo o pontífice, foi a colaboração entre ele e o grande imã Ahmad Al-Tayyeb, clérigo da prestigiosa Universidade Al-Azhar, no Egito. Francisco e Al-Tayyeb assinaram juntos um documento sobre a fraternidade humana em Abu Dhabi, em fevereiro de 2019, e o religioso islâmico é citado diversas vezes ao longo da “Fratelli Tutti”.
Em parte, a encíclica soa como um reconhecimento, por parte do papa, de que sua visão sobre o futuro da Igreja Católica e das relações internacionais tem sido rejeitada por boa parte do mundo nos últimos anos. Entusiasta da integração entre os países europeus, da busca de soluções diplomáticas para conflitos e do combate às mudanças climáticas, Francisco alerta que “a história dá sinais de regressão”.
“Reacendem-se conflitos anacrônicos que se consideravam superados, ressurgem nacionalismos fechados, exacerbados, ressentidos e agressivos. Em vários países, uma certa noção de unidade do povo e da nação, penetrada por diferentes ideologias, cria novas formas de egoísmo e de perda do sentido social mascaradas por uma suposta defesa dos interesses nacionais”, escreve o papa. “Frequentemente as vozes que se levantam em defesa do ambiente são silenciadas ou ridicularizadas, disfarçando de racionalidade o que não passa de interesses particulares.”
Francisco atribui boa parte da culpa por esses retrocessos ao que costuma chamar de “cultura do descarte”, um tipo de pensamento voltado apenas para a eficiência econômica e que tende a marginalizar os mais vulneráveis da sociedade, em especial os pobres, os que sofrem de alguma deficiência, os idosos e os jovens.
“A pandemia deixou a descoberto as nossas falsas seguranças. Ficou evidente a incapacidade de agir em conjunto. Apesar de estarmos superconectados, verificou-se uma fragmentação que tornou mais difícil resolver os problemas que nos afetam a todos. Se alguém pensa que se tratava apenas de fazer funcionar melhor o que já fazíamos, ou que a única lição a tirar é que devemos melhorar os sistemas e regras já existentes, está a negar a realidade”, afirma o papa.
É preciso pensar num modelo alternativo de civilização que contrarie essa lógica, diz Francisco, para quem a maior inspiração deve vir da parábola do Bom Samaritano, contada por Jesus no Evangelho de Lucas. Na narrativa bíblica, um homem atacado e gravemente ferido por ladrões numa estrada é socorrido por um samaritano (etnia considerada desprezível pelos judeus do tempo de Cristo), enquanto um sacerdote e um levita, membros da elite religiosa de Jerusalém, passam pelo necessitado e nada fazem.
A história não apenas enfatiza a importância da solidariedade como também mostra que é preciso romper as barreiras de preconceito que separam as pessoas por raça, credo ou orientação política, como as que separavam judeus de samaritanos na época de Jesus, afirma Francisco.
Tal princípio tem de ser colocado em prática para acolher os imigrantes que estão em busca de uma vida melhor, segundo a encíclica. Ao mesmo tempo, o papa defende que não se deve conduzir ao apagamento das diferenças culturais ou religiosas, mas que fortalecer a identidade própria de cada cultura é um passo importante para o diálogo sadio com os outros e para o enriquecimento mútuo trazido pelo contato entre os povos.
Como em outras de suas pregações, Francisco alerta para o fato de que o mundo estaria vivendo uma “terceira guerra mundial por pedaços”, considerando os muitos conflitos étnicos e religiosos de pequena escala que afligem o planeta. Diante dessa situação, ele propõe uma reformulação importante da doutrina católica sobre as chamadas “guerras justas”, afirmando que o recurso à guerra praticamente não pode mais ser justificado hoje. Para ele, o mesmo vale para a pena de morte.
Vista em seu conjunto, a nova encíclica talvez seja o resumo mais claro dos caminhos propostos por Francisco ao catolicismo e à sociedade global. Diante de um mundo cada vez mais polarizado, o papa redobrou sua aposta no que chama de “cultura do encontro”. Resta saber se ainda está em tempo de fazer a maré virar.

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