A vitória de Joe Biden nas eleições americanas reduz, ao menos temporariamente, o risco de um conflito armado entre os EUA e a China. Mas isso não significa que o novo presidente terá uma atitude suave ao lidar com o rival: ele deverá escolher algumas brigas para comprar.
A avaliação é de Graham Allison, 80, cientista político, professor em Harvard há cinco décadas e ex-conselheiro do Departamento de Defesa nos governos de Ronald Reagan e Bill Clinton.
Allison lançou recentemente no Brasil o livro “A Caminho da Guerra” (editora Intrínseca), no qual compara vários conflitos entre potências ao longo da história com a realidade atual para tirar lições que poderiam evitar uma guerra entre EUA e China.
À Folha, por email, ele comentou o que esperar do governo Biden nas relações com o país asiático e em outras questões internacionais.

Folha – A vitória de Joe Biden amplia ou reduz a possibilidade de que EUA e China entrem em guerra?
Graham Allison – No curto prazo, reduz. Em vez do modelo personalista e impulsivo de Donald Trump, que governa por tuítes, Biden tem demonstrado ao longo de sua carreira que entende a necessidade de reflexão ao tomar decisões de política externa e de procedimentos normais nas relações internacionais, que antes eram
chamados de “diplomacia”.
Os líderes nos dois países sabem que uma guerra seria catastrófica para ambos. Por que, no entanto, podemos ver um risco de isso acontecer na próxima década? A razão é a armadilha de Tucídides.
Quando uma potência ascendente ameaça superar uma potência dominante, alarmes deveriam soar: perigo extremo à frente. Tucídides explica essa dinâmica perigosa com o caso da ascensão de Atenas sobre a rival Esparta, na Grécia antiga. Nos séculos seguintes, essa história se repetiu muitas vezes.
Nos últimos 500 anos, houve 16 casos em que uma potência em ascensão ameaçou superar uma estabelecida. Destes, 12 terminaram em guerra.
A menos que Xi Jinping falhe em sua ambição de ‘fazer a China grande de novo’ o país continuará a desafiar a posição habitual da América no topo de cada hierarquia existente. Se Xi tiver sucesso, a China substituirá os EUA como potência predominante no leste da Ásia.
Folha – Como a relação EUA-China pode mudar com Biden no poder?
Graham Allison – “Barulho” é uma palavra que define a política do governo Trump para a China, e Biden deverá fazer diferente. Ele não está indo para a Casa Branca como novato. Após oito anos como vice e uma década como líder da Comissão de Relações Exteriores do Senado, ele tem ideias claras sobre como conduzir relações com outras nações. . Ele e Xi já passaram muitas horas juntos.
Ao contrário do que alguns comentaristas chineses têm sugerido, uma Presidência Biden não será um terceiro mandato de Obama. Biden vê a China como um rival sério e está determinado a fazer com que os EUA não apenas disputem, mas vençam as lutas que mais importam.
Como vários conselheiros têm sinalizado, sua administração não será suave com a China, mas, em vez disso, inteligente em combater iniciativas chinesas das quais discorda, buscando competir e ao mesmo tempo, cooperar.
Enquanto Trump tem aversão por alianças e organizações multilaterais, Biden sempre tem agido como um homem de alianças. Ele sabe que elas podem multiplicar a força.
Espero um maior papel dos diplomatas nas negociações com a China, reavivando conversas em todos os níveis, recolocando funcionários do CDC [Centro de Controle e Prevenção de Doenças] no escritório de Pequim que foram retirados por Trump e demonstrando prontidão para voltar a ter jornalistas dos EUA na China, e vice-versa, se Pequim estiver disposta a autorizar que esses profissionais trabalhem em termos iguais.
Folha – De que formas Biden pode tentar baixar a tensão entre os dois países?
Graham Allison – Pelas práticas anteriores de Biden, posso identificar alguns pontos que oferecem pistas sobre sua provável abordagem: restauração das práticas normais de política externa, reversão de iniciativas nocivas e realismo sobre o fato inescapável de que EUA e China vivem em um pequeno globo onde cada um encara ameaças existenciais que não pode combater sozinho.
Ambos encaram desafios para sobreviver à crise climática e a arsenais nucleares que impõem riscos previstos na doutrina MAD [sigla em inglês para Destruição Mútua Garantida].
Sobreviver nesse ambiente requer comunicação robusta para minimizar desentendimentos e erros de cálculo, contenções para frear escalamentos que podem levar a um conflito indesejado, coordenação e cooperação para evitar que provocações de terceiros ou acidentes não os levem a uma guerra indesejada.
Folha – Há risco de um conflito entre EUA e China começar por razões acidentais?
Graham Allison – O fato de haver uma potência em ascensão já tem impacto ruim o suficiente na potência estabelecida.
No mundo real, esse fato é percebido de modo subjetivo, ampliando percepções erradas e multiplicando erros de cálculo. Quando um competidor “sabe” qual é a “real motivação” do outro, toda ação é interpretada como uma confirmação desse viés.
Sob essas condições, os competidores se tornam hostis a provocações de terceiros –ou mesmo a acidentes. Um evento como o assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando em Sarajevo, em junho de 1914, que poderia não ter consequências, gerou uma resposta que disparou uma espiral de ações e reações que levou as potências [Reino Unido e Alemanha] a um resultado que não era desejado por nenhuma delas.
Neste momento, governantes em Pequim e Washington entendem que estão presos numa rivalidade tucididiana. Como alguém que esteve profundamente engajado na Guerra Fria com a União Soviética, Biden está familiarizado com as melhores práticas desenvolvidas naquelas décadas. Elas começam com unir esforços para identificar potenciais crises e preparar exercícios para explorar opções de respostas.
Folha – O mundo vive hoje uma espécie de “guerra da vacina” . Como o sucesso nessa disputa vai alterar as dinâmicas globais?
Graham Allison – O sucesso e o fracasso de cada país em sua própria “guerra” contra o coronavírus –incluindo a corrida por uma vacina– inescapavelmente serão aspectos importantes em suas rivalidades internacionais.
Mesmo se uma nação levar sua taxa de novas infeccões domésticas a zero, quando seus cidadãos voltarem do exterior poderão trazer o vírus com eles e criar novas ondas de infecção –porque o vírus não respeita fronteiras.
Portanto, a vitória de cada país requer uma vacina efetiva. Ao mesmo tempo, se a China tiver sucesso em não só achatar, mas virar a curva de novas infecções em direção a zero, como eles parecem ter feito, enquanto os EUA se afundam [no problema], nenhuma retórica será capaz de disfarçar os resultados. As consequências para a competição geral e para a posição da China e dos EUA no mundo serão profundas.
Folha – O governo Trump buscou enfraquecer entidades internacionais como a ONU e a OMS. Se, como esperado, Biden levar os EUA a voltar a dar importância a essas entidades, isso ajudará de fato a evitar conflitos entre EUA e China?
Graham Allison – Você está correto em esperar que Biden seja multilateralista. Ele critica o “América primeiro” de Trump por gerar uma “América sozinha”. Ao responder a líderes estrangeiros que ligaram para parabenizá-lo, Biden disse várias vezes “A América está de volta” e ressaltou sua intenção de levar os EUA de volta ao Acordo de Paris e de se reaproximar da OMS.
No século 15, a Espanha crescia e parecia a caminho de superar Portugal como a maior potência dos mares. Felizmente, eles decidiram apelar a uma autoridade mais alta: o papa. Como árbitro, Alexandre 6º deu a sugestão que foi a base do Tratado de Tordesilhas.
Os dois países disseram ter vencido: a Espanha legitimou sua exploração [na América], e Portugal confirmou o domínio sobre a rota para a Índia. Depois disso, não houve conflitos por quase um século.
A subordinação a autoridades internacionais tem limites. No entanto, na medida em que os Estados podem ser persuadidos a seguir determinações dessas autoridades, elas podem ter papéis importantes em gerenciar conflitos que de outras formas poderiam terminar em guerra.
Folha – A ascensão de uma nova potência ao posto de líder global costuma ser marcada por algum evento, como uma vitória militar ou conquista científica. Que evento poderia confirmar a China como maior país do mundo?
Graham Allison – Ao levar em conta a métrica que o FMI [Fundo Monetário Internacional] e a CIA [Agência Central de Inteligência dos EUA] consideram a melhor para comparar economias nacionais, o PPP [paridade de poder de compra], a China já é a número 1. Hoje sua economia é cerca de um sexto maior do que a dos EUA [US$ 24,2 trilhões versus US$ 20,8 trilhões dos EUA].
Tradicionalmente, os economistas usam a métrica MER [Taxa de Câmbio de Mercado, na sigla em inglês] para calcular o PIB [Produto Interno Bruto]. Por essa régua, a China terá um PIB de US$ 14,6 trilhões, versus um PIB dos EUA de US$ 20,8 trilhões.
Mas essa comparação assume que sete yuans compram a mesma quantidade de produtos que um dólar compra nos EUA. Não é o caso. Ao adquirir a maioria dos produtos, de hambúrgueres a smartphones, mísseis e bases navais, os chineses conseguem quase o dobro de poder de compra por cada nota.
O governo chinês usa a métrica PPP em seu levantamento anual sobre a economia. Mas, instrutivamente, parou de divulgar esse relatório em 2014 quando a economia chinesa ultrapassou a dos EUA [nessa métrica].
Obviamente, a China encara muitos desafios econômicos sérios –de uma sociedade que envelhece e débitos pesados a uma taxa de crescimento que esfriou, ao redor de 5%. Mas só uma das grandes economias do mundo será maior ao fim deste ano de pandemia do que era no começo: a China.
Folha – Biden fala em acelerar a transição rumo à economia verde. Isso poderá levar os EUA a dominar o que pode ser uma nova etapa da economia global? Ou o país chega um pouco tarde nessa disputa, onde China e Europa já fizeram avanços?
Graham Allison – Talvez os EUA não possam dominar [este mercado]. Mas podem aspirar a ser os mais inteligentes. Na busca por melhorar as tecnologias mais avançadas, o 0,0001% dos indivíduos mais brilhantes faz uma diferença decisiva. Os EUA podem ter sucesso em recrutar esses talentos entre os 7,7 bilhões de pessoas na Terra e tornar esses indivíduos capazes de realizar todo seu potencial.
Folha – O Brasil tem fortes relações comerciais com Estados Unidos e China. Como o país pode evitar problemas conforme a tensão entre os dois lados cresce?
Graham Allison – Pequim tem tamanha superioridade no poder econômico que muitos países não têm opção realista a não ser concordar com seus termos. Aqueles que tinham se tornado dependentes comercialmente da China são particularmente vulneráveis: quando desentendimentos surgem, Pequim simplesmente atrasa importações e bloqueia exportações.
Conforme a influência chinesa avança, devemos esperar que a rivalidade econômica China-EUA esquente na América Latina. Os líderes do Brasil precisam de imaginação e iniciativa para evitar ficarem presos no meio dessa disputa.

Raio-x Graham Allison, 80, nasceu em Charlotte, na Carolina do Norte. Em 1968, obteve doutorado em ciência política por Harvard, onde dá aulas sobre política e governo. Foi conselheiro especial de Defesa no governo Reagan e secretário-assistente de Defesa no governo Clinton, além de ter ocupado cargos em outros departamentos do governo americano. É também ex-diretor de centros de pesquisa, como o Belfer Center e o Council on Foreign Relations e esteve no conselho de administração de empresas de petróleo e energia.

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