ANA BOTTALLO

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A decisão do Ministério da Saúde de aplicar uma terceira dose das vacinas contra Covid-19 em idosos acima de 70 anos e imunossuprimidos, a partir do dia 15 de setembro, usando preferencialmente os imunizantes da Pfizer ou AstraZeneca, é respaldada pela comunidade científica.

Ao contrário do que diz o governo de São Paulo, a escolha pelas vacinas de RNA (como a Pfizer, baseada na tecnologia inovadora de RNA mensageiro) ou de vetor viral (como AstraZeneca, que usa um vírus inofensivo para dar instruções ao corpo de como se proteger da Covid) para a dose de reforço aos idosos e imunossuprimidos foi uma determinação técnica e unânime entre os membros da Câmara Técnica de assessoramento para assuntos de imunização da pasta da saúde.

O grupo é formado por representantes das sociedades científicas (como a Sociedade Brasileira de Infectologia e a Sociedade Brasileira de Imunizações), do Conass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde) e do Conasems (Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde), dentre outros.

Em São Paulo, porém, o governador do estado, João Doria (PSDB), o secretário estadual de saúde, Jean Gorinchteyn, o diretor do Instituto Butantan, Dimas Covas, e o coordenador-executivo do comitê científico que assessora a gestão, João Gabbardo, têm defendido a utilização de qualquer imunizante que estiver disponível no momento da aplicação da dose de reforço.

A aplicação de uma dose adicional em pessoas com mais de 90 anos começa em São Paulo na próxima segunda-feira (6).

A argumentação, dizem, é que a Nota Técnica n? 27/2021, publicada no dia 26 de agosto, faz referência a dois estudos conduzidos pela Sinovac, fabricante chinesa da Coronavac, que indicam aumento da resposta imune após uma terceira dose do imunizante tanto em pessoas com até 59 anos quanto naquelas com 60 anos ou mais, entre seis a oito meses após a segunda dose.

“No momento da conclusão ela [Rosana Melo, a secretária de enfrentamento à Covid-19 do ministério que assina a nota] conclui pela vacina da AstraZeneca e da Pfizer. Nós estamos tratando aqui de questões técnicas, científicas e essas apontam que a terceira dose com a Coronavac aumenta enormemente a resposta imune. Do outro lado, temos um posicionamento que é até mais política do Ministério da Saúde quando descredencia (…) essa vacina como terceira dose”, disse Covas, na última quarta-feira (1?) em entrevista coletiva no Palácio dos Bandeirantes.

No entanto, os dois estudos citados por Covas, apesar de apontarem para um aumento na taxa de anticorpos neutralizantes no corpo de três a cinco vezes, no caso das pessoas com 18 a 59 anos, e até sete vezes naquelas acima de 60 anos, também indicam uma queda significativa desses anticorpos seis meses após a aplicação da segunda dose nos dois grupos.

A redução na capacidade protetora das vacinas já foi verificada para todos os tipos de imunizantes, mas ela é muito mais acentuada nas vacinas de vírus inativado, como é o caso da Coronavac. Isso porque a tecnologia inovadora de RNA mensageiro ou mesmo de vetor viral induz uma resposta imune elevada em comparação às vacinas chamadas tradicionais (as de vírus inativado), e, mesmo com o decaimento, ela se mantém alta.

Além disso, estudos de efetividade -ou eficácia na vida real- conduzidos no Brasil indicam uma proteção de apenas 35% da Coronavac contra mortes em pessoas com 90 anos ou mais -nesse sentido, uma terceira dose do mesmo imunizante não seria suficiente para fornecer a resposta protetora necessária nessa faixa etária, dizem especialistas.

Na noite da última sexta (3), a Anvisa informou que se reuniu com o Butantan e que solicitou dados ao instituto que comprovem a eficácia e maior geração de resposta imune da dose de reforço da Coronavac, além de dados que não foram apresentados até agora sobre a imunogenicidade da vacina.

Um esquema heterólogo de reforço, isto é, a combinação de vacinas diferentes daquelas utilizadas nas primeiras doses, no entanto, já possui evidências sólidas de aumento considerável na resposta imune, explica Julio Croda, infectologista e pesquisador da Fiocruz.

“Há dois estudos de booster [dose de reforço] com intervalo de três semanas em relação à segunda dose, um com Coronavac/AstraZeneca [conduzido na Tailândia] e outro com Coronavac/Pfizer [conduzido em Hong Kong]. O esquema de três doses de quem recebeu Coronavac e depois recebe a vacina de vetor viral ou RNA mostra uma resposta de dez a cem vezes maior em termos de anticorpos neutralizantes. Os dois estudos de terceira dose com Coronavac tiveram entre cinco e sete vezes aumento de anticorpos. O benefício é inequívoco [para o uso de vacinas de RNA ou vetor viral]”, afirma.

Da mesma maneira, um estudo com cerca de 800 pessoas conduzido no Reino Unido avaliou a aplicação heteróloga (de vacinas de marcas diferentes) de Pfizer com AstraZeneca e de AstraZeneca com Pfizer. “A mistura desses imunizantes também gera resposta imune mais robusta, sem aumento de efeitos adversos”, explica Croda, o que também pode indicar que não há problema aplicar um reforço com Pfizer nos idosos que receberam a AstraZeneca no início do ano.

A justificativa antes para não escolher a marca da vacina, numa tentativa de combater os chamados “sommeliers”, era o receio de não haver imunizantes de um determinado tipo disponíveis para todos, explica Ethel Maciel, epidemiologista e professora da Universidade Federal do Espírito Santo.

“Mas agora já temos mais conhecimento de como as vacinas funcionam em cada grupo, e é natural que a gente tenha que reformular o pensamento de antes. Isso não significa ser contra a Coronavac, que foi fundamental no início, salvou milhões de vidas. Se a gente não tivesse a Coronavac muito mais pessoas teriam morrido. Porém, dizer que uma terceira dose da Coronavac é semelhante a uma terceira dose heteróloga da Pfizer, não há evidências que sustentam isso”, afirma.

Para Renato Kfouri, diretor da Sbim (Sociedade Brasileira de Imunizações) e membro da câmara técnica de assessoramento do ministério, a decisão do governo de SP sai da lógica da ciência e confunde ainda mais a população, que não sabe em quem confiar.

“O importante é que a campanha seja uníssona. Quando o governo de SP diz que vai usar qualquer vacina, ele não ajuda a campanha em geral. É ruim tanto a disputa política que o governo federal fez até agora [contra as vacinas] quanto essa disputa que São Paulo coloca. Isso atrapalha a comunicação”, reforça Maciel.

O mesmo pensamento é compartilhado pela imunologista Cristina Bonorino. “Usar a dose que estiver disponível no momento [da dose adicional] em idosos e imunossuprimidos é cair em um terreno de ‘vamos fazer qualquer coisa’, sem argumentação lógica”, diz.

Bonorino, que defende um esquema de revacinação completo nos idosos, com duas doses da Pfizer, e não apenas uma dose adicional, uma vez que a eficácia de 95% encontrada nos ensaios clínicos do imunizante só é ofertada com o esquema completo, lembra que o ministério está conduzindo quatro estudos distintos sobre dose de reforço. As pesquisas observam booster com Pfizer, booster com AstraZeneca na versão antiga, booster com uma versão atualizada da AstraZeneca e booster em indivíduos que tomaram Coronavac com uma de quatro opções (Pfizer, AstraZeneca, Janssen ou Coronavac).

“Se o próprio Ministério recomendasse a Coronavac como reforço, ele estaria indo contra os próprios estudos que está financiando. É como você pegar e jogar dinheiro fora se não for seguir o que as evidências dizem”, afirma.

Ao defender a Coronavac como alternativa para a terceira dose, o governo de SP se respalda ainda na argumentação de uma possível falta de doses para completar o esquema vacinal de adultos com mais de 18 anos que receberam a primeira dose da AstraZeneca ou da Pfizer e também na necessidade de não interromper a vacinação dos adolescentes –cuja única vacina autorizada para uso é a da Pfizer.

“A pasta federal já colocou naquela mesma nota técnica a antecipação para oito semanas da segunda dose de AstraZeneca e Pfizer em adultos, então a avaliação do ministério é de que é possível fazer o reforço em idosos e imunossuprimidos e ao mesmo tempo adiantar a vacinação completa. Para o quantitativo de doses, é possível fazer as duas coisas”, explica Maciel.

Foto de destaque: Filho/SES-PE

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