KLAUS RICHMOND E DANIEL E. DE CASTRO
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Ana Sátila Vargas, 24, ainda lembra com clareza da vez que mais sentiu medo no esporte.
Com dez anos, durante um treinamento em Primavera do Leste (MT), a hoje principal referência do país na canoagem slalom –modalidade na qual o atleta rema em canoa ou caiaque por percurso em corredeira definido por balizas– viu o barco de mais de 13 kg improvisado pelo pai, Cláudio Vargas, virar no percurso do Rio das Mortes.

“Fiquei desesperada, pensei que não fosse sobreviver. Meu pai sempre nadou, então, logo pulou na água, mas só me encontrou quilômetros à frente, com o barco enroscado e pendurada em uma árvore”, ela lembra em entrevista à Folha. “No começo, sentia muito medo de tentar algo que não sabia, de virar [o barco].”

Menos de dois anos depois do episódio, Ana Sátila já faturava o primeiro campeonato brasileiro de canoagem, competindo com adultos. Em 2012, aos 16, foi a integrante mais jovem da delegação de 259 representantes do Brasil na Olimpíada de Londres.

“Depois, com a experiência, não tinha mais o medo no esporte. O que sentia era um medinho por não conseguir um resultado. Acho que o atleta de alto rendimento vive isso, certo? E o Rio de Janeiro me abalou muito”, conta.

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Na segunda Olimpíada, em 2016, um erro inesperado na fase eliminatória custou a derrota mais dolorosa da carreira. Passou longe do pódio que tanto almejava e chamou a atenção do público presente por uma cena comovente, quando correu em direção ao pai e foi consolada em seu colo, com o rosto escondido.

“Cheguei a parar de remar por um tempo, logo depois dos Jogos. Demorou muito tempo até entender que, como atleta, não estou resumida só ao resultado no Rio. Foi uma coisa que trabalhei por muito tempo com minha psicóloga, eu não conseguia nem falar sobre. Hoje, sei que se tivesse vencido não teria aprendido tanto”, afirma.

Mais madura e munida de ferramentas para vencer os medos, ela acredita viver a melhor fase da carreira. Na última semana, conquistou um ouro inédito para o país, na prova da categoria C1 (canoa) da etapa de Tacen, na Eslovênia, da Copa do Mundo de canoagem slalom.

Versátil, está classificada para disputar essa prova e também a K1 (caiaque) na Olimpíada de Tóquio.

“Eu sei que estou em um nível muito bom, tanto físico, como técnico. Esse fator de confiança tem mudado totalmente a minha perspectiva de performance. Cheguei à última etapa da Copa do Mundo para ganhar dois ouros. No Rio eu sabia que precisava ser melhor do que eu era no momento para conseguir algo, fazer uma descida muito boa. Hoje, sei que se fizer o que faço todos os dias nos treinos já será suficiente”, projeta.

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A decepção no Rio ainda se uniu à perda do técnico italiano Ettore Vivaldi, de quem era próxima. Ele saiu para comandar a equipe da Itália.

A reinvenção como atleta passou por uma transformação mental e, também, de local de treinos. No fim de 2017, ela deixou Foz do Iguaçu, onde estava o então principal complexo de treinamentos da América do Sul, para praticar na pista utilizada na última Olimpíada, em Deodoro, na zona oeste do Rio de Janeiro.

Neste ano, a atleta recebeu como um baque a notícia do adiamento dos Jogos para 2021. “Isso me abalou muito. Sabia que a gente tinha a possibilidade de ficar muito tempo treinando em casa.”

Durante esse período, foram recorrentes as conversas com a psicóloga Sâmia Hallage, a quem atribui papel fundamental para manter o foco.

Com a ajuda do namorado, o francês Mathieu Desnos, e da irmã Omira (os dois também competem na canoagem slalom), ela montou com recursos próprios uma academia improvisada dentro de casa, em Foz do Iguaçu.

“Conseguimos montar uma estrutura, fazendo até alguns equipamentos. Então, toda essa parte física a gente tinha em casa. Improvisamos uma pista em um córrego, perto de Foz. Colocamos as balizas, canos de PVC. Acredito que voltei a Deodoro fisicamente até melhor do que antes”, diz.

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A volta ao Rio ocorreu no fim de julho, com mais cinco atletas, entre eles Pepê Gonçalves, que também conquistou uma medalha de ouro e outra de bronze na última etapa da Copa do Mundo.

Com duas Olimpíadas na bagagem e a caminho da terceira, a “veterana” de 24 anos tem pretensões que não se limitam ao próprio desempenho, mas alcançam o futuro da modalidade no país.

“No Brasil sofremos muito, não tem menina iniciando na modalidade e isso me incomoda. Quando parar de remar quero focar em ajudar, principalmente, escolinhas a investirem em formação”, afirma a atleta, que conclui neste ano a graduação a distância em educação física e também cursa comércio exterior.

“Todo dia eu deito e tento imaginar o que poderia fazer de melhor para ajudar a canoagem no Brasil a crescer”, completa a mineira.

Atualmente, a atleta realiza treinamentos em Pau, na França, onde competirá em mais uma etapa da Copa do Mundo, nos próximos dias 6 e 8. Até os Jogos de Tóquio, com os medos para trás, ela espera firmar de vez a sua melhor versão para conseguir a tão sonhada medalha.

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